Relata-nos
São Dionísio Areopagita, através de uma resposta dada a um certo
monge, chamado Demófilo, que “um certo pagão seduzira e fizera
voltar à idolatria um cristão candiota (que nasceu na ilha de
Cândia ou Creta), recém-convertido à fé. Carpo, homem eminente em
pureza e santidade de vida, e que há grande aparência de ter sido
Bispo de Cândia, concebeu por isso, tamanha cólera como nunca
sofrera tal, e deixou-se arrastar tanto por essa paixão, que,
levantando-se à meia-noite para rezar segundo seu costume, concluiu
consigo mesmo não ser razoável que os homens ímpios vivessem mais,
rogando à Divina Justiça matar com um raio aqueles dois pecadores
juntos, o pagão sedutor e o cristão seduzido. Vede, porém,
Teótimo, o que Deus fez para corrigir a aspereza da paixão de que o
pobre Carpo estava dominado. Primeiramente, fez-lhe ver, como a outro
Santo Estêvão, o Céu todo aberto, e Jesus Cristo Nosso Senhor
sentado num grande trono, rodeado por uma multidão de Anjos que lhe
assistiam em forma humana; depois, ele viu embaixo, a terra aberta
como um horrível e vasto Inferno e os dois desviados, a quem ele
desejara tanto mal. À beira desse precipício, trêmulos e quase
desmaiados de pavor, por estarem prestes a cair dentro, atraídos de
um lado por uma multidão de serpentes, que, saindo do abismo, se
lhes enroscavam nas pernas e com as caudas lhes faziam cócegas e os
provocavam à queda; e, do outro lado, certos homens que os
empurravam e batiam para os fazerem cair, de modo que eles pareciam
estar a pique de ser abismados naquele precipício. Ora, considerai,
rogo-vos , Teótimo, a violência da paixão de Carpo. Porque,
conforme ele mesmo contava depois a São Dionísio, ele não fazia
caso de contemplar Nosso Senhor e os Anjos que se mostravam no Céu,
tanto prazer achava em ver embaixo a angústia tremenda daqueles dois
míseros maus, incomodando-se somente com o fato de tardarem eles
tanto a perecer, e esforçando-se, portanto, para os precipitar por
si mesmo; e, não o podendo fazer logo, despeitava-se com isso e os
maldizia, até que enfim, levantando os olhos ao Céu, viu o meigo e
mui compassivo Salvador que, por uma extrema piedade e compaixão do
que se passava, se levantou do seu trono e, descendo até o lugar
onde estavam aqueles dois pobres miseráveis, lhes estendeu a Sua mão
bondosa, ao mesmo tempo que os Anjos também, uns de um lado, outros
doutro, os retinham para impedi-los de cair naquele tremendo abismo;
e, por conclusão, o amável e bondoso Jesus, dirigindo-se ao
colérico Carpo, diz: olha, Carpo, bate agora em Mim; pois, estou
pronto a padecer mais uma vez para salvar os homens; e isto me seria
agradável se pudesse suceder sem o pecado dos outros homens. Porém,
ademais, reflete o que te seria melhor, estar neste abismo com as
serpentes ou ficar com os Anjos que são tão grandes amigos dos
homens. Teótimo, o santo homem Carpo tinha razão de entrar em zelo
por aqueles dois homens, e o seu zelo excitara justamente a cólera
contra eles; porém, uma vez movida, a cólera deixara a razão e o
zelo para trás, ultrapassando as fronteiras e limites do santo amor,
e por conseguinte, do zelo, que lhe é o fervor. Convertera o ódio
do pecado em ódio do pecador, e a dulcíssima caridade em furiosa
crueldade.
Assim
há pessoas que, pensam, não se possa ter muito zelo se não se tem
muita cólera, achando não poderem acomodar coisa alguma se não
estragarem tudo, conquanto, ao contrário, o verdadeiro zelo quase
nunca se serve da cólera: porque, assim como não se aplica o ferro
e o fogo aos doentes, senão quando não se pode fazer de outro modo,
assim também, o santo zelo não emprega a cólera senão nas
extremas necessidades”.
Fonte: São Francisco de Sales, “Tratado do
Amor de Deus”, Liv. Xº, Cap. XV, pp. 541-543; 2ª Edição,
Editora Vozes, Petrópolis-RJ, 1996. Texto extraído do ensaio "Do Ódio ao Próximo e as suas Consequências".
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