(Enarrationes
in psalmos)
Sermão
1.
Não nos podemos furtar a tão
numerosa multidão, mas também não devemos onerar sua fraqueza.
Pedimos silêncio e tranquilidade, para que nossa voz, depois do
esforço de ontem, encontre forças para ir até o fim. Acredito que
V. Caridade hoje compareceu em maior número apenas no intuito de
rezar pelos que se ausentam devido a sentimentos alheios e maus.
Pois, não falamos de pagãos, nem de judeus, mas de cristãos; nem
se trata de catecúmenos, mas de muitos já batizados, de quem não
vos diferenciais pelo Batismo, mas pelo coração. Pensamos em
quantos são hoje nossos irmãos, e contudo lastimamos que procurem
vaidades e loucas mentiras, negligenciando sua vocação! Se, por
acaso, no circo eles se horrorizam por alguma coisa, logo fazem o
Sinal da Cruz, mas permanecem de pé, trazendo-o na fronte, num lugar
de onde deviam se afastar se o trouxessem no coração. Seria
necessário suplicar a misericórdia de Deus que lhes desse
entendimento para condenar estas coisas, sentimento para delas fugir,
e misericórdia para perdoar. Oportunamente o Salmo que hoje foi
cantado é penitencial. Dirigimo-nos também aos ausentes. Vossa
memória fará junto deles o papel de nossa voz. Não negligencieis
os feridos e debilitados, mas para mais facilmente curá-los, deveis
manter-vos com saúde. Corrigi arguindo, consolai discorrendo,
oferecei um exemplo vivendo honestamente. Assista-os quem vos
assistiu. Pelo fato de que já atravessastes estes perigos, não foi
cortada a ponte da misericórdia de Deus. Eles chegarão ao ponto a
que chegastes, e passarão por onde passastes. Certamente é molesto,
sumamente perigoso, ou antes, pernicioso, sem dúvida mortal, pecar
conscientemente. Uma coisa é alguém que despreza a voz de Cristo
correr para estas vaidades, e outra alguém não saber o que deve
evitar. Mas o presente Salmo mostra que nem destes se deve
desesperar.
2.
Este é o teor do título: “Salmo
de Davi. Quando veio ter com ele o profeta
Natan, depois que se unira com Bersabéia”.
Era
mulher casada. Devemos falar com dor e tremor; todavia, Deus não
quis se calasse o que fez ser escrito. Direi, portanto, não o que
quero, mas o que sou impelido a dizer. Proferirei, não exortando à
imitação, mas instruindo para incutir temor. O rei e profeta Davi,
a cuja estirpe, segundo a carne, pertenceria o Senhor, seduzido pela
beleza dessa mulher, desposada a outro, com ela cometeu adultério.
Este Salmo não o narra, mas alude a isto o título. No livro dos
Reis, porém, conta-se tudo por extenso. Ambas as Escrituras são
canônicas, ambas sem dúvida alguma devem ser utilizadas pelos
fiéis. O pecado foi cometido e isso está escrito. Davi mandou matar
o marido de Bersabéia na guerra. Acrescentou um homicídio ao
adultério. Depois de cometer este pecado foi-lhe enviado o profeta
Natan, da parte de Deus, que o arguiu de tão grande crime.
3.
Declaramos o que devem os homens evitar. Ouçamos a quem hão de
imitar se tiverem caído. Muitos querem cair com Davi, mas não
querem se levantar com ele. Não é exemplo de queda que te é
proposto, e sim de como te reerguer se tiveres caído. Cuidado para
não cair. A queda dos grandes não deve dar prazer aos menores, mas
sirva a sua queda para incutir temor aos que estão abaixo.
Foi para isto que foi proposto, que foi escrito, para isto na Igreja
frequentemente é lido e cantado. Escutem os que não caíram, a fim
de evitar a queda, ouçam os que caíram para se levantarem. Não se
calou o pecado de tão grande varão. É anunciado na igreja. Os maus
ouvintes escutam e procuram nisso uma defesa de seus pecados. Prestam
atenção no modo de defender o pecado que decidiram cometer, aos
invés de se precaverem do que não cometeram, e dizem a si mesmos:
Se Davi assim agiu, por que não posso também eu? Por esta razão, a
alma se torna pior do que Davi, querendo agir assim visto que Davi o
fez; seu pecado é pior do que o de Davi. Vou explicar melhor, se
puder. Davi não tomara a outro por exemplo, como tu. Caíra por
ceder à concupiscência, e não por pretexto de não ser pecado; tu,
porém, o propões a ti mesmo como exemplo, porque ele é Santo, mas
a fim de pecares. Não imitas a sua santidade, mas imitas sua queda.
Amas em Davi o que ele mesmo odiou em si. Preparas-te para pecar,
decides pecar. Examinas o Livro de Deus para pecar; ouves as Sagradas
Escrituras a fim de praticar aquilo que desagrada a Deus. Não foi
assim que agiu Davi. Foi repreendido pelo profeta, mas não caiu como
profeta. Alguns, contudo, escutam de modo salutar, e vendo a queda de
um forte medem melhor a sua fraqueza; desejosos de evitar o que Deus
condena, com segurança moderam seus olhares. Não fixam os olhos na
beleza carnal, imaginando por perversa simplicidade que estão
firmes. Não dizem: Olhei com boa intenção, olhei por amizade, com
benevolência olhei longamente. Pensam na queda de Davi. Reconhecendo
que são pequenos, não querem ver o que pode fazê-los cair, pois
veem que o grande caiu. Reprimem os olhos da insolência, não se
reúnem facilmente com as mulheres dos outros, não se detém no meio
delas, não dirigem os olhos para as sacadas e terraços vizinhos.
Pois, Davi viu de longe aquela que o prendeu. A mulher estava longe,
mas a concupiscência estava perto. Fora dele estava o que ele via,
mas dentro de si tinha o que o faria cair. Faz-se necessário
precaver-se desta fraqueza da carne, recordando-se do que disse o
Apóstolo: “O
pecado não impere mais em vosso corpo mortal”.
Não
disse: Não exista, mas: “não
impere”.
O pecado está aí,
quando sentes; mas só impera se consentires.
Há de ser refreada e não seguida a deleitação carnal,
principalmente quando se estender a objetos ilícitos e alheios. Deve
ser domada pela vontade, e não se tornar voluntária. Olha sem
receio, se não atinge teus sentimentos. Mas, podes replicar: Fico
firme. Acaso és mais forte do que Davi?
4.
Tal exemplo serve
de aviso, para que ninguém se orgulhe na prosperidade. Muitos
receiam a adversidade, mas não temem a prosperidade. No entanto, a
prosperidade é mais perigosa para alma do que a adversidade para o
corpo. A prosperidade, primeiro corrompe a alma, e depois a
adversidade a encontra num estado de fragilidade. Meus irmãos,
vigiai atentamente contra a felicidade. Por isso, vede como a Palavra
de Deus nos previne contra a segurança em nossa felicidade: “Servi
ao Senhor com temor e exultai diante d’Ele com tremor”.
Com
exultação, demos graças; com temor de cair. Davi não pecou
enquanto sofria a perseguição de Saul. Quando o santo profeta Davi
sofria a inimizade de Saul, quando estava angustiado por suas
perseguições, quando fugia por diversas regiões para não cair nas
mãos do rei, não desejou a mulher do próximo, nem matou o marido
depois de ter cometido adultério com a mulher.
Na fraqueza de sua tribulação estava tanto mais atento ao que Deus
manda quanto mais infeliz se via. Determinadas tribulações são
úteis. É útil a ferramenta do médico. Muito mais do que a
tentação do Diabo. Davi se tornou seguro de si depois de vencer os
inimigos; a angústia passou e o orgulho cresceu. Valha-nos, pois,
este exemplo para termos receio da felicidade. Diz o salmista:
“Encontrei a
tribulação e a dor e invoquei o nome do Senhor”.
5.
Mas
isto sucedeu. Diria tais coisas aos que não cometeram tal pecado
para que guardem vigilantes sua integridade e vendo a queda de um
grande, os pequenos sintam medo. Todavia, se alguém houver caído e
ouve estas coisas, tendo na consciência uma culpa, preste atenção
às palavras deste Salmo: verifique
o tamanho da ferida, mas não perca a esperança no poder do médico.
Cair no desespero por causa do pecado é morte certa. Por
conseguinte, ninguém diga: Se cometi algum mal já estou condenado.
Deus não perdoa esta espécie de pecados; porque não continuarei a
pecar? Gozarei com delícia neste mundo, com lascívia, com desejos
impuros; tendo já perdido a esperança de conversão, tenha ao menos
o que vejo, uma vez que não poderei ter o que creio. Este Salmo, no
entanto, como previne os que não caíram, igualmente não quer que
desesperem os que pecaram. Quem quer que sejas que pecaste, e hesitas
em fazer penitência por teu pecado, desanimado relativamente a tua
salvação, escuta Davi a gemer. Não te foi enviado o profeta Natan,
mas o próprio Davi. Escuta-o a clamar, e clama com ele; escuta-o a
gemer, e geme simultaneamente; escuta-o a chorar, e une as tuas
lágrimas às dele; escuta-o emendado, e alegra-te com ele. Se não
impediste o pecado, não se encerre para ti a esperança do perdão.
A Davi foi enviado o profeta Natan. Observa a humildade do rei. Não
repeliu as palavras de ordem; não repeliu: Como ousas falar assim ao
rei, que sou? Rei sublime, que ouviu o profeta; o povo humilde ouça
a Cristo.
6.
Escuta, portanto, estas palavras, e repete com ele: “Piedade
de mim, ó Deus, segundo a tua grande misericórdia”.
Quem suplica grande misericórdia confessa sua enorme miséria.
Procurem menor misericórdia os que pecaram por ignorância. “Piedade
de mim, ó Deus, segundo a tua grande misericórdia”.
Socorre ao gravemente ferido, com teus enérgicos medicamentos. Grave
é minha doença, mas refugio-me no Onipotente. Perderia a esperança
por causa de meu ferimento mortal se não encontrasse tão grande
médico. “Piedade
de mim, ó Deus, segundo a tua grande misericórdia; e
com a abundância de tuas comiserações apaga a minha iniquidade”.
“Apaga a minha iniquidade”
corresponde
a
“Piedade de mim, ó Deus”.
E “a abundância
de tuas comiserações”
equivale a “segundo
a tua grande misericórdia”.
Muitas misericórdias porque é grande a misericórdia; e desta
grande misericórdia derivam as muitas comiserações. Olhas os que
desprezam para corrigi-los, voltas-te para os ignorantes para
ensinar-lhes, atendes os pecadores para perdoá-los. Cometeu pecados
por ignorância? Alguém
os cometera, praticando muitos males: “Mas
obtive misericórdia, porque agi por ignorância”.
Davi não pode dizer: “Agi
por ignorância”.
Não ignorava que grande pecado era tocar na mulher do próximo, e
ainda matar o marido que desconhecia o fato, e por isso, nem podia se
encolerizar. Mas, conseguem a misericórdia do Senhor os que agem por
ignorância, enquanto os que pecam conscientemente obtêm não
qualquer uma, mas uma grande misericórdia.
7.
“Lava-me cada vez mais de minha injustiça”.
Por
que razão: “cada
vez mais?”
Porque estava muito manchado. Cada vez mais lava os pecados de quem
está ciente, enquanto lava os pecados de quem está na ignorância.
Nem assim deve-se desesperar de tua misericórdia. “E
purifica-me de meu pecado”.
Por mérito de quem? Ele é médico e oferece a graça; é Deus,
oferece o sacrifício. O que darás para seres purificado? Vê a quem
hás de invocar. Invocas o justo, que odeia o pecado, pelo fato mesmo
de ser justo. Pune o pecado, se é justo. Não podes subtrair de Deus
a sua justiça. Implora a misericórdia, mas espera a justiça. É
próprio da misericórdia perdoar o pecador e peculiar à justiça
castigar o pecado. E então? Buscas a misericórdia e o pecado ficará
impune? Responderá Davi, responderão os decaídos, responderão com
Davi para merecerem a mesma misericórdia que ele, e digam: Não,
Senhor, meu pecado não ficará impune. Conheço a justiça d’Aquele
cuja misericórdia procuro. Não ficará impune, mas não quero que
Tu me castigues, porque me arrependo de meu pecado. Peço que
perdoes, porque reconheço meu pecado.
8.
“Reconheço a minha iniquidade e o meu pecado
está sempre diante de mim”.
Não para
trás o que fiz, não olho os outros, esquecido de mim mesmo, não
tento retirar o argueiro do olho de meu irmão, quando
tenho uma trave nos meus.
Meu pecado está a minha frente, não nas costas. Estava atrás de
mim quando me foi enviado o profeta, e me propôs a parábola da
ovelha
do pobre. Disse o profeta Natan a Davi: “Um
homem rico possuía ovelhas em grande número. Um pobre, seu vizinho,
tinha só uma pequena ovelha. Ele a criara junto de si e a alimentava
com a sua comida. Um hóspede veio à casa do homem rico, que nada
quis tirar de seu rebanho. Tomou a ovelhinha do pobre e a preparou
para sua visita. De que é digno?”
Davi, então, irado proferiu a sentença. De fato, o rei sem saber em
que laço caíra, proferiu sentença de morte para o rico, que devia
devolver a ovelha ao quádruplo.
Sentença muito severa, no entanto, justíssima. Mas seu pecado ainda
não estava diante dele. Achava-se atrás dele o que cometera. Ainda
não reconhecia sua iniquidade, e por isto não perdoava a alheia. O
profeta, contudo, que para tal fora enviado, tirou o pecado de suas
costas, e colocou-o diante de seus olhos, para que visse que proferia
sentença tão severa contra si mesmo. Transformou a língua dele num
bisturi para cortar e curar a ferida que ele tinha no coração.
Igualmente, assim agiu o Senhor para com os judeus, quando lhe
apresentaram a mulher adúltera, propondo-lhe uma cilada, mas quem
nela caiu foram eles mesmos. Disseram: “Esta
mulher foi surpreendida em adultério. Moisés nos ordena apedrejar
tais mulheres. Tu, porém, que dizes?”
Eles tentavam apanhar a Sabedoria de Deus numa cilada ambivalente. Se
o Senhor mandasse que a despedissem livre, incorreria na calúnia de
ser censor da lei. Sua resposta foi a seguinte: Não disse: Matai;
não disse: Soltai, mas: “Quem
dentre vós não tem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra”.
É justa a lei que ordena se mate uma adúltera; mas esta lei justa
pede ministros inocentes. Ponderai quem é que apresentais, mas
atendei também no que sois. “Eles,
porém, ouvindo isso, saíram um após outro. Ficaram a adúltera e o
Senhor”,
restaram a mulher ferida e o médico, a grande miséria e a grande
misericórdia. Os que a apresentaram encheram-se de vergonha, mas não
pediram perdão; a que fora levada perante o Senhor confundiu-se e
foi curada. Disse-lhe o Senhor: Mulher,
ninguém te condenou? Disse ela: Ninguém, Senhor. Disse, então
Jesus: Nem eu te condeno. Vai, e de agora em diante não peques
mais”.
Por acaso, Cristo agiu contra a sua Lei? Pois, o Pai não dera a Lei
sem o Filho. Se por Ele foram feitos o Céu, a terra e tudo o que
eles contêm, como a Lei seria promulgada sem o Verbo de Deus? Nem
Deus, nem o imperador agem contra as suas próprias leis quando dão
perdão aos faltosos
que confessarem. Moisés é ministro da Lei, mas Cristo é
promulgador da Lei. Moisés manda apedrejar, enquanto é juiz, ao
invés, Cristo, como rei, dá o perdão. Deus, portanto, dela se
compadeceu em sua grande misericórdia, conforme ela aqui roga, pede,
exclama, lamenta. Isto não quiseram fazer os que apresentaram a
adúltera. Reconheceram o médico, porque lhe mostraram o ferimento,
mas não procuraram dele o remédio. Desta maneira agem muitos que
não se envergonham de pecar, mas têm vergonha de fazer penitência.
Oh! Incrível loucura! Não te coras da ferida, e tens vergonha das
faixas? Porventura não é mais fétida e pútrida quando está
descoberta? Refugia-te, portanto, junto do médico, faze penitência,
dizendo: “Reconheço
a minha iniquidade e o meu pecado está sempre diante de mim”.
9.
“Só contra Ti pequei e fiz o mal diante de
Ti”.
Qual o sentido desta palavra? Não
fora diante dos homens que Davi cometeu adultério e matou o marido
desta mulher? Todos não souberam do ato de Davi? Por que então: “Só
contra Ti pequei e fiz o mal diante de Ti?”
Porque és o único sem pecado. Só é justo para punir aquele que em
nada merece ser castigado; é justo censor pois não tem em si algo
de repreensível. “Só
contra Ti pequei e fiz o mal diante de Ti; para que
Te justifiques em Tuas palavras e venças
ao seres julgado”.
É difícil, irmãos, saber a quem são dirigidas estas palavras. O
salmista fala, em verdade, a Deus, e é claro que Deus Pai não foi
julgado. O que significa: “Só
contra Ti pequei e fiz o mal diante de Ti; para que Te
justifiques em Tuas
palavras e venças ao seres julgado”.
Ele vê que o futuro juiz deve ser primeiro julgado, o justo julgado
pelos pecadores, e nisto mesmo seria vencedor, porque não havia nele
o que julgar. Somente entre os homens pôde dizer com verdade o homem
Deus: Se encontraste pecado em mim, declarai-o.
Mas existiria algo de oculto aos homens, e estes não descobriam o
que de fato havia, porque não era evidente? Em outra passagem afirma
o perspicaz examinador de todos os pecados: “O
príncipe do mundo vem”.
Declara: “O
príncipe do mundo vem”,
o príncipe da morte, a infligir a morte aos pecadores, pois, a morte
entrou no mundo pela inveja do Diabo.
“O príncipe do
mundo vem”
(disse o Senhor, quando a paixão estava próxima); “contra
mim ele nada pode”,
não encontrará pecado algum, nada que mereça a morte, nem
condenação. Seria como se lhe dissesse alguém: Então, por que hás
de morrer? Prossegue: “Mas
o mundo saberá que faço como o Pai me ordenou. Levantai-vos!
Partamos daqui!”.
Sofro,
diz ele, sem merecer pelos que merecem a morte, para torná-los
dignos de minha vida, pois indignamente sofro a morte em seu favor. O
profeta Davi diz então a este que não tem pecado algum: Só
contra Ti pequei e fiz o mal diante de Ti; para que Te justifiques em
Tuas palavras e venças ao seres julgado”.
Superas todos os homens, todos os juízes, e quem se reputa por
justo, diante de Ti é injusto. Tu somente julgas com justiça, Tu
que foste injustamente julgado, que tens o poder de entregar a Tua
vida e poder de novamente retomá-la.
Vences, portanto, ao seres julgado. Superas a todos os homens; és
mais do que todos eles, que por Ti foram feitos.
10.
“Só contra Ti
pequei e fiz o mal diante de Ti; para que Te justifiques em Tuas
palavras e venças ao
seres julgado. Eis que fui concebido em iniquidade”.
Seria
como se dissesse: São vencidos os que fizeram como tu, Davi. Não é
pequeno mal, pequeno pecado, cometer adultério com homicídio. Que
acontece aos que desde o nascimento, desde que saíram do seio de sua
mãe, nada fizeram de semelhante? Também a estes imputas alguns
pecados, de sorte que o Senhor supere a todos, ao começar a ser
julgado? Davi faz o papel de todo o gênero humano, pondera os
vínculos de todos, considera a propagação da morte, nota a origem
da iniquidade, e diz: “Eis
que fui concebido em iniquidade”.
Por acaso nascera Davi de um adultério? Nascera de Jessé, homem
justo e de sua esposa.
Por que razão diz que foi concebido em iniquidade, senão porque
contraiu o Pecado Original de Adão? A própria necessidade da morte
liga-se ao pecado. Ninguém nasce sem contrair a culpa, a pena. Diz
em outra passagem o profeta: “Ninguém
é puro em tua presença, nem a criança de um dia de vida sobre a
terra”.
Mas, sabemos que no batismo de Cristo os pecados são perdoados, e
que este batismo vale para a remissão dos pecados. Se as crianças
são inteiramente inocentes, porque as mães correm para a igreja
quando elas adoecem? Que pecado apaga aquele batismo, a que se refere
aquele perdão? Vejo a criança inocente a chorar, não a se
encolerizar. Que lava o batismo? Que dívida se paga com aquela
graça? Apaga-se a propagação do pecado. Se aquela criança pudesse
falar, te diria, e se já tivesse o entendimento que possuía Davi,
te responderia: O que observas em mim, que sou uma criança? É
verdade que não vês pecados que tenha cometido, mas fui concebido
em iniquidade e “em
pecado me gerou minha mãe”.
Isento deste vínculo da concupiscência carnal, nasceu Cristo não
de um varão, mas de uma Virgem que concebeu por obra do Espírito
Santo. Dele
não se pode dizer que foi concebido em iniquidade; não se pode
dizer: Sua mãe O gerou em pecado. A Ela foi dito: “O
Espírito Santo virá sobre ti, e poder do Altíssimo vai te cobrir
com a sua sombra”.
Por conseguinte, não se diz que os homens são concebidos em
iniquidades e em pecado são gerados pelas mães, porque seria pecado
a união dos cônjuges, mas porque a geração se produz numa carne
sujeita à pena devida ao pecado. O castigo da carne é a morte, e de
fato nela é inerente a própria mortalidade. Daí decorre que o
Apóstolo não afirma que o corpo há de morrer, mas que está morto.
Diz ele: O corpo
está morto, pelo pecado, mas o espírito é vida, pela justiça”.
Como, então, nasceria sem o vínculo do pecado quem é concebido e
gerado de um corpo morto pelo pecado? A casta união conjugal não é
culpada, mas o Pecado Original acarreta a merecida pena. O marido não
é mortal enquanto tal, mas devido ao pecado. O Senhor também era
mortal, mas não por causa de algum pecado. Aceitou a pena que
merecíamos, e assim apagou a nossa culpa. Com razão, portanto,
todos morrem em Adão, mas em Cristo todos são vivificados.
“Eis porque”,
diz o Apóstolo, “por
meio de um só homem o pecado entrou no mundo, e pelo pecado a morte,
e assim a morte passou a todos os homens, porque nele todos
pecaram”.
Está
bem delimitada a questão: Em Adão todos pecaram. Excetua-se apenas
a criança inocente que não nasceu com o pecado de Adão.
“Eis
que amaste a verdade. Tu me revelaste as coisas incertas e recônditas
de tua sabedoria. Amaste a
verdade”,
isto é, não deixaste impunes
os pecados, nem mesmo daqueles a quem perdoaste, “Amaste
a verdade”.
Concedeste misericórdia, contudo conservaste a verdade. Perdoas
àqueles que confessam; perdoas, mas ao penitente. Assim se preserva
a misericórdia unida à verdade. Misericórdia porque o homem é
libertado; verdade porque o pecado é punido. “Eis
que amaste a verdade. Tu me revelaste as coisas incertas e recônditas
de tua sabedoria”.
Por que motivo “recônditas?”
Por que “incertas?”
Porque até a estes Deus Perdoa. Nada de tão oculto, nada de tão
incerto. Diante desta incerteza, os ninivitas fizeram penitência.
Declararam, disseram a si mesmos que deviam pedir misericórdia,
apesar das ameaças do Profeta, apesar de seu aviso: “Ainda
três dias, e Nínive será destruída”.
Perguntaram-se uns aos outros: “Quem
sabe? Talvez Deus volte atrás, arrependa-se e se compadeça”.
Estavam na incerteza, pois diziam: “Quem
sabe?”
Na dúvida, fizeram penitência e mereceram misericórdia segura.
Prostraram-se com lágrimas, jejuns, cilício e cinza, gemeram,
choraram e Deus os poupou.
Nínive ficou de pé, ou foi destruída? Os homens veem de um modo e
Deus de outro. Penso que se cumpriu o que o Profeta predissera.
Pondera o que foi Nínive, e vê que foi destruída, derrubada
relativamente ao mal, edificada no tocante ao bem, assim como Saulo,
o perseguidor, foi derrubado e ergueu-se Paulo, o pregador.
Quem não diria que à nossa cidade seria uma felicidade ser
destruída de sorte que todos os insensatos deixassem suas
futilidades, e acorressem à igreja contritos, pedindo a misericórdia
de Deus em relação a seus pecados passados? Não diríamos: Onde
está aquela Cartago? Como não é mais o que fora, foi destruída;
mas se ela se tornou o que não, foi edificada. Por esta razão é
que foi dito a Jeremias: “Eu
te constituo para arrancar e para destruir, para exterminar e para
demolir, para construir e para plantar”.
Daí
também aquela palavra do Senhor: “Sou
eu quem fere e torno a curar”.
Fere, extrai a podridão do crime, cura a dor da ferida. Assim fazem
os médicos, que cortam, extraem, curam. Armam-se para ferir, usam o
bisturi para curar. Mas como os pecados dos ninivitas eram grandes,
eles disseram: “Quem
sabe?”
Essa incerteza Deus tirara de seu servo Davi. Ao responder ele, ao
Profeta que estava em sua presença e o arguia: “Pequei”,
logo ouviu do Profeta, isto é, do Espírito de Deus que estava no
Profeta: “O
Senhor perdoa a tua falta”.
Ele lhe revelou as coisas incertas e recônditas de sua sabedoria.
12.
“Aspergir-me-ás com o hissopo e serei
purificado”.
Sabemos que o hissopo é uma erva insignificante, mas medicinal; suas
raízes aderem às pedras. Daí se tirou a comparação, o símbolo
da purificação do coração. Também tu firma-te na raiz do amor, a
tua pedra. Sê humilde, unido a teu Deus humilde, para que sejas
sublime em teu Deus glorificado. Serás aspergido com o hissopo; a
humildade de Cristo te purificará. Não desprezes a erva; ao invés,
atende à virtude do medicamento. Direi ainda alguma coisa que
costumamos ouvir dos médicos, ou experimentar nos doentes. Diz-se
que o hissopo é apto a purificar os pulmões. Os pulmões costumam
assinalar a soberba. Dali parte o inchaço, o hálito. Foi dito de
Saulo, o perseguidor, como sendo Saulo soberbo, que partira para
prender os cristãos, respirando morticínio.
Respirava
morticínio, desejava derramar sangue, tinha os pulmões não
purificados. Escuta-o agora, humilde porque foi purificado por meio
do hissopo: “Aspergir-me-ás com o hissopo e
serei purificado: lavar-me-ás e ficarei mais alvo do que a neve”,
isto é, purificar-me-ás. Diz o Profeta: “Mesmo
que os vossos pecados sejam como escarlate, tornar-se-ão alvos como
a neve”.
É destes fiéis que Cristo tece a veste sem mancha nem ruga.
Por este motivo, a sua veste no Monte, que brilhou ficando alva como
a neve,
representava a Igreja purificada de toda mácula de pecado.
13.
Mas por que o hissopo figura a humildade? Ouve o versículo seguinte:
“Far-me-ás ouvir o júbilo e a alegria e
exultarão os ossos humilhados.
Far-me-ás ouvir o júbilo e a alegria”.
Alegrar-me-ei ao ouvir-te. Não falarei contra ti. Pecaste. Por que
te defendes? Queres falar. Sofre, ouve, atende à voz divina, não te
perturbes, não te firas mais ainda. Cometeste pecado. Não te
defendas, mas procura a Confissão, não a defesa. Se te apresentas
como defensor de teu pecado, serás vencido. Não patrocinaste um
inocente. Não te será útil tua defesa. Quem és tu para te
defenderes? És apto para te acusares. Não digas: Nada fiz. Ou: Que
grande pecado cometi? Ou: Os outros fizeram o mesmo. Se ao pecares
dizes que nada cometeste, nada serás, nada receberás. Deus está
disposto a dar-te o perdão. Tu te fechas para teu prejuízo. Ele
está pronto a dar. Não oponhas o obstáculo da defesa, mas abre o
peito para a Confissão. “Far-me-ás
ouvir o júbilo e a alegria”.
O Senhor me dê a possibilidade de dizer o que penso. São mais
felizes os que ouvem do que os que falam. Quem está aprendendo
faz-se humilde; o mestre deve se esforçar para não se tornar
soberbo, para não deixar que se insinue o desejo de agradar como não
deve, a fim de que não desagrade a Deus, quem quer agradar aos
homens. Grande tremor sente quem ensina, meus irmãos, grande é o
tremor que temos enquanto falamos. Crede no que há em nosso coração,
que não podeis ver. Conhece-o aquele que pode se aplacar. Seja-nos
Ele propício, pois é com grande temor que vos falamos. Quando O
ouvimos interiormente sugerindo e ensinando, sentimo-nos seguros,
alegramo-nos tranquilos. Estamos subordinados ao mestre, procuramos
sua glória, louvamo-lO enquanto ensina. Sua verdade deleita-nos
interiormente, onde ninguém faz ou ouve ruído. Ali disse o salmista
estar sua alegria e sua exultação. “Far-me-ás
ouvir o júbilo e a alegria”.
Ouve pois é humilde. Quem ouve, quem ouve de verdade, quem ouve bem,
ouve humildemente. A glória pertence àquele a quem o ouvinte
escuta. Após haver dito: “Far-me-ás
ouvir o júbilo e a alegria”,
mostra imediatamente o efeito desta audição: “E
exultarão os ossos humilhados”.
Os ossos foram humilhados. Os ossos do ouvinte não demonstram
orgulho, nem inchaço, o qual é vencido apenas por aquele que fala.
Por conseguinte, João Batista, o varão humilde e grande, em
comparação do qual não houve maior entre os nascidos de mulher, de
tal forma se humilhou que se declarou indigno de desatar as correias
das sandálias de seu Senhor;
deu glória a seu Mestre e com isto se tornou seu amigo. Quando era
considerado como sendo o Cristo
e poderia por isso encher-se de soberba e se projetar, disse: “Quem
tem a esposa é o esposo, mas o amigo do esposo, que está presente o
ouve”.
Não foi ele que disse ser o Cristo, mas poderia ter aceitado o erro
dos homens que assim pensavam, e além disso, queriam prestar-lhe
esta honra; mas ele rejeitou a falsa honra para encontrar a
verdadeira glória. Vê a humildade que obteve ao ouvir o esposo:
“Ficou de pé a
ouvir”;
não caiu e falou. Está de pé e ouve que ele prestou à palavra de
onde lhe veio o júbilo e a alegria? “Está
de pé e ouve, e é tomado de alegria à voz do esposo. Far-me-ás
ouvir o júbilo e a alegria e exultarão os ossos humilhados”.
14.
“Desvia a tua face de meu pecado e apaga todas
as minhas iniquidades”.
Os ossos humilhados já exultam, já fui purificado com o hissopo, e
tornei-me humilde. “Desvia
a tua face”,
não de mim, mas “de
meus pecados”.
Em outra passagem, efetivamente, diz: “Não
desvies de mim a tua face”.
Quem não quer que a face de Deus se desvie de si procura que Ele a
desvie de seus pecados. Dá atenção ao pecado do qual Deus não
aparta sua face; se Ele observa, condena. “Desvia
a tua face de meus pecados e apaga todas as minhas iniquidades”.
Preocupa-se com aquele grande pecado; mas presume ainda mais sejam
apagadas todas as suas iniquidades. Presume da mão do médico,
daquela grande misericórdia de que tratou no princípio do salmo:
“Apaga
a minha iniquidade”.
Deus desvia a sua face e assim apaga; desviando a face, apaga os
pecados, dando atenção anota. Ouviste que Ele apaga, desviando a
face, ouve agora o que há de fazer quando presta
atenção. “Mas
a face do Senhor volta-se contra os malfeitores, para apagar da terra
a memória deles”
e não os pecados. Aqui, porém, como roga o salmista? “Desvia
a tua face de meus pecados”.
É bom rezar assim. O próprio salmista, porém, não desvia a face
de seus pecados, pois afirma: “Reconheço
a minha iniquidade”.
Com justeza rezas, e rezas bem para que Deus desvie a sua face de teu
pecado, se tu mesmo não apartas a tua: se, porém, pões os teus
pecados nas costas, Deus volta para eles a sua face. Tu deves colocar
teu pecado em tua presença, se queres que Deus dele aparte a sua
face. E assim rezarás com segurança porque Ele há de ouvir.
15.
“Cria
em mim, ó Deus, um coração puro”.
Cria, não quer dizer, faze algo de novo. Mas orava como um penitente
que cometera algo que diminuíra sua inocência; por isso diz: “Cria,
e renova em
minhas entranhas um espírito reto”.
Minha
ação debilitara e curvara a retidão de meu espírito. Foi dito em
outro salmo: “Mantiveram
curva a minha alma”.
Quando o homem se torna propenso às concupiscências terrenas,
curva-se de certa maneira; quando se ergue para as coisas do alto,
seu coração se torna reto e passa a considerar a bondade de Deus.
Como é bom o Deus de Israel para os retos de coração.
Em consequência disso, irmãos, ouvi. Às vezes, Deus repreende por
causa do pecado aquele a quem há de perdoar no século futuro. Pois,
ao próprio Davi, ao qual fora dito pelo Profeta: “O
Senhor perdoou a tua falta”,
sobrevieram alguns castigos de que Deus o ameaçara, por causa do
pecado. Seu filho Absalão fez-lhe cruenta guerra e humilhou muito o
pai.
Davi passou os dias na dor, na tribulação de sua humilhação, de
tal modo submisso a Deus que confessava serem justos os castigos e
que ainda nada do que sofria era imerecido. Já possuía um coração
reto e agradava-lhe Deus. Ouvia com paciência um homem a injuriá-lo
e a lançar pesadas maldições contra ele; era dos adversários, um
soldado que apoiava seu filho impiedoso. Enquanto ele lançava
maldições contra o rei, um dos companheiros de Davi, encolerizado,
quis feri-lo, mas Davi o impediu. Como o fez? Dizendo: “Amaldiçoe,
se o Senhor lhe ordenou que o fizesse”.
Reconhecendo a sua culpa, aceitou o castigo, sem procurar a própria
glória. Louvava o Senhor por causa do bem que possuía, louvava-O
devido ao que sofria, bendizia-O em todo tempo, tendo sempre seu
louvor nos lábios.
Assim
agem os que são retos de coração, mas não os perversos, que se
consideram certos e que Deus está errado. Se praticam o mal
alegram-se; se sofrem algum mal blasfemam. Além disso, se passam por
tribulação e suportam um castigo, dizem em seu coração perverso:
Ó Deus, que te fiz? De fato, a Deus nada fizeram; tudo foi contra
eles mesmos. “E
renova em minhas entranhas um espírito reto”.
16.
“Não
me expulses de tua presença. Desvia a tua face de meus pecados;
e não me expulses de tua presença”.
Teme a sua face, contudo a invoca. “Não
me expulses de tua presença, nem
me retires o teu Santo Espírito”.
Pois, o Espírito Santo está naquele que confessa. Já é um dos
dons do Espírito Santo desagradar-te o que fizeste. Os pecados
agradam ao espírito imundo, mas causam desprazer ao Santo. Portanto,
embora ainda peças perdão, de outro lado, por te desagradar o mal
que cometeste, unes-te a Deus. Então, desagrada-te o mesmo que a
Ele. Já são dois para acabar com tua febre: tu e o médico. Uma vez
que não é possível haver confissão e castigo do pecado no homem,
provenientes de si mesmo, vem de um dom do Espírito alguém se
penitenciar e ter horror do pecado. O salmo não diz: Dá-me teu
Santo Espírito, mas: “não
retires de mim. Nem me retires o teu santo espírito”.
17.
“Restitui-me
a alegria de tua salvação”.
Restitui a alegria que eu tinha e perdera com o pecado. “Restitui-me
a alegria de tua salvação”,
a saber, de teu Cristo. Pois, quem ficou curado sem seu auxílio?
Mesmo antes de nascer de Maria, no princípio era o Verbo e o Verbo
estava com Deus e o Verbo era Deus.
Os Santos Pais acreditavam na futura encarnação do mesmo modo que
nós nela acreditamos, depois de realizada. Variaram os tempos, não
a fé. “Restitui-me,
depois de tua salvação e
sustenta-me com o espírito principal”.
Alguns viram neste trecho uma referência a Deus Trino, executando-se
a Encarnação; pois está escrito: “Deus
é espírito”.
Parece que a um ser que não é corpo só lhe resta ser espírito.
Alguns, portanto, são de opinião de que aqui se trata da Trindade:
“espírito
reto”
aludiria ao Filho, “espírito
santo”
seria o Espírito Santo, e “espírito
principal”
seria o Pai. Quer se adote este parecer, quer se aplique a expressão:
“Espírito
reto”
ao próprio homem dizendo: “Renova
em minhas entranhas um espírito reto”
(pois o pecado o curvou e distorceu; enquanto “espírito
principal”
seria o Espírito Santo, que o homem pede não se retire, mas ao
invés, o confirme) nem uma nem outra dessas opiniões é herética.
18.
Mas, vede o acréscimo: “Sustenta-me
com o espírito principal”.
Em que tu “me
sustenta?”
Uma vez que me perdoaste, que estou certo de que não são atribuídos
a mim mesmo os teus dons, por isto fico tranquilo; e por esta graça
confirmado, não serei ingrato. Que farei, então? “Ensinarei
aos maus os teus caminhos”.
Eu, um ex-malvado, ensinarei aos malvados; quero dizer, fui também
eu iníquo, mas já não o sou, nem o Espírito Santo de mim se
retirou, e fui sustentado pelo espírito principal, por isso,
“ensinarei
aos maus os teus caminhos”.
Quais ensinarás? “E
a ti se converterão os ímpios”.
Se o pecado de Davi for atribuído à impiedade, os ímpios não
percam a esperança, porque Deus perdoou ao ímpio; contanto que se
convertam, que aprendam os seus caminhos. Se, porém, não for
atribuído à impiedade o pecado de Davi, mas propriamente for
denominada impiedade a apostasia, o fato de deixar de adorar o único
Deus (nunca ter adorado, ou ter deixado de fazê-lo), refere-se ao
cúmulo dos pecados a frase: “E
a ti se converterão os ímpios”.
Deus é de tal maneira cheio de misericórdia que não se deve perder
a esperança a respeito de nenhum pecador, nem mesmo dos ímpios que
a Ele se convertem. “E
a ti se converterão os ímpios”.
De que forma? Que seja reputada como justiça a fé dos que creem
n’Aquele que justifica o ímpio.
19.
“Livra-me
da mancha dos sangues, ó Deus, Deus de minha salvação”.
O tradutor latino verteu literalmente do grego. Todos sabemos que em
latim não se emprega a palavra sangue no plural. No entanto, em
grego verteram no plural, não por acaso, mas porque assim se acha no
original hebraico. O piedoso tradutor preferiu empregar uma palavra
menos latina do que menos literal. Por que foi dito no plural: “dos
sangues?”
Com a expressão: sangues, como na origem da carne de pecado, quis o
salmista dar a entender muitos pecados. O Apóstolo, considerando os
pecados provenientes da corrupção da carne e do sangue, disse: “A
carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus”.
Efetivamente, segundo a fé verdadeira professada pelo mesmo
Apóstolo, a carne ressurgirá e receberá a incorruptibilidade,
conforme ele diz: “É
necessário que este ser corruptível revista a incorruptibilidade e
que este ser mortal revista a imortalidade”.
Como
a corrupção origina-se do pecado, com este mesmo nome se designa o
pecado, da mesma forma que se chama língua aquele pedaço de carne,
aquele membro que se move dentro da boca, ao proferirmos as palavras,
e também língua a locução que precisa da língua para se exercer,
por exemplo, a língua grega, a língua latina. A carne é igual, o
som é diferente. Por conseguinte, como se chama língua aquilo que
se fala empregando a língua, assim se chama sangue a iniquidade que
se faz por meio do sangue. O salmista, portanto, atendendo as suas
muitas iniquidades, disse mais acima: “Apaga
a minha iniquidade”;
e atribuindo-a à corrupção da carne e do sangue, pede: “Livra-me
da mancha dos sangues”,
a saber, livra-me das iniquidades, purifica-me de toda corrupção.
Anela pela incorruptibilidade aquele que diz: “Livra-me
da mancha dos sangues, porque a carne e o sangue não podem herdar o
reino de Deus, nem a corrupção a incorruptibilidade. Livra-me da
mancha dos sangues, ó Deus, Deus de minha salvação”.
Mostra que, quando a salvação for perfeita no corpo, não haverá
mais corrupção, significada pelos nomes de carne e sangue; será a
perfeita saúde do corpo. Pois, agora como pode ser sadio o que
deslisa, sofre necessidades, sente uma espécie de doença contínua
com a fome e a sede? Tudo isso, então, não existirá mais. Os
alimentos são para o ventre e o ventre para os alimentos. Deus,
porém, destruirá estes e aqueles.
Deus dará ao corpo uma forma acabada, quando a morte for absolvida
pela vitória,
e não restar mais corrupção, nem defeito, nem mudança de idade,
nem cansaço de trabalho que exige reforço de alimento, ou refeição.
Mas não estaremos sem alimento ou bebida, pois o próprio Deus será
nosso alimento, nossa bebida. Somente este alimento nos refaz, sem se
consumir. “Livra-me
da mancha dos sangues, ó Deus, Deus de minha salvação”.
Agora já estamos num regime de salvação. Ouve o que diz o
Apóstolo: “Somos
salvos em esperança”.
Vê que ele tratava da salvação do corpo: “Gememos
interiormente, suspirando pela redenção do nosso corpo. Pois fomos
salvos em esperança; e ver o que se espera, não é esperar. Acaso
alguém espera o que vê? E se esperamos o que não vemos é na
perseverança que o aguardamos”.
Aquele que perseverar até o fim – trata-se da paciência – esse
será salvo – a salvação que ainda não temos, mas haveremos de
ter. Ainda não veio a realidade, mas a esperança é segura.
“E
minha língua celebrará com exultação a tua justiça”.
20.
“Abrirás,
ó Senhor, os meus lábios, e a minha boca anunciará o teu louvor”.
“Teu louvor”,
porque fui criado; “teu
louvor”,
porque não fui abandonado quando pequei; “teu
louvor”,
porque fui admoestado a que confessasse; “teu
louvor”,
porque fui purificado para estar em segurança. “Abrirás
os meus lábios, e a minha boca anunciará o teu louvor”.
21.
“Pois
se quisesses um sacrifício, de certo eu o ofereceria”.
Davi vivia no tempo em que se ofereciam a Deus sacrifícios de
animais, mas ele via o futuro. Não nos reconhecemos nestas palavras?
Aqueles sacrifícios eram figurados e prenunciavam o único
sacrifício salutar. No entanto, não ficamos sem vítima a oferecer
a Deus. Ouve o que diz o salmista, preocupado com o seu pecado, e
querendo ser perdoado do mal que fez: “Pois
se quisesses um sacrifício, de certo eu o ofereceria. Não te
comprazes em holocaustos”.
Então nada oferecemos? E assim nos apresentaremos diante de Deus? E
como o aplacaremos? Oferece; pois, de fato, tens em ti o que
oferecer. Não é preciso adquirir incenso fora, mas dize: “Em
mim, ó Deus, estão os votos de louvor que cumprirei”.
Não procures exteriormente um animal para imolares, porque tens
dentro de ti o que imolar. “Sacrifício
a Deus é o espírito contrito; ao coração arrependido e humilhado
Deus não despreza”.
Certamente despreza um outro, um cabrito, um carneiro; em nossa época
não devem mais ser oferecidos. Eram apresentados quando indicavam ou
prometiam algo; mas a realidade prometida já chegou, e as promessas
acabaram. “Ao
coração contrito e humilhado Deus não despreza”.
Como sabeis, Deus é altíssimo; se te exaltares, afastar-se-á de
ti; se te humilhares, aproximar-se-á de ti.
22.
Vede quem pronuncia estas palavras. Parecia que era apenas Davi a
rezar. Vede aí nossa imagem e o tipo da Igreja. “Senhor,
em tua bondade, derrama sobre Sião teus benefícios”.
Derrama
teus benefícios sobre esta Sião. Qual? A cidade santa. Qual é? A
que não pode ficar escondida, porque situada sobre um monte.
Sião, como posto de observação, porque vê algo do que espera.
Sião se interpreta: observação, e Jerusalém: visão de paz.
Reconheceis que vos achais em Sião e em Jerusalém, se esperais com
segurança o objeto futuro de vossa esperança, e se tendes paz com
Deus. “E
reedifica os muros de Jerusalém. Senhor, em tua bondade, derrama
sobre Sião teus benefícios; reedifica os muros de Jerusalém”.
Não pense Sião que tem merecimentos por si mesma; tu, Senhor,
derrama sobre ela teus benefícios. “Reedifica
os muros de Jerusalém”.
Construam-se as defesas de nossa imortalidade, na fé, esperança e
caridade.
23.
“Aceitarás
então o sacrifício de justiça”.
Agora, porém, o sacrifício é por causa da iniquidade, isto é, o
de um coração contrito e humilhado. Então, será o sacrifício de
justiça, somente o louvor. Felizes os que habitam em tua casa.
Louvar-te-ão pelos séculos dos séculos – eis o sacrifício de
justiça.
“As
oblações e os holocaustos”.
Que são holocaustos? São os sacrifícios inteiramente consumidos
pelo fogo. Chamava-se holocausto o sacrifício em que todo o animal
era colocado sobre o altar para ser consumido pelo fogo. Que o fogo
divino nos consuma inteiramente, e aquele calor nos abrase. Qual?
“Ninguém
se subtrai a seu calor”.
Qual calor? Aquele a que se refere o Apóstolo: “Fervorosos
de espírito”.
Não somente a nossa alma seja consumida por aquele fogo divino da
sabedoria, mas também o nosso corpo a fim de merecer a imortalidade.
O holocausto vá a tal ponto que a morte seja absorvida pela vitória.
“As
oblações e os holocaustos. Então se oferecerão novilhos sobre teu
altar”.
De onde “os
novilhos?”
Qual a opção? A inocência da nova idade, ou
o pescoço livre do jugo da Lei?
24.
Em nome de Cristo, terminamos
o salmo, talvez não como o desejaríamos, mas conforme pudemos.
Pouco resta a vos dizer, irmãos, por causa dos males entre os quais
vivemos. Estando no meio das vicissitudes humanas, não podemos nos
alhear das coisas humanas. Temos de viver com tolerância no meio dos
maus, pois quando éramos maus, os bons nos suportaram. Se não
olvidarmos o que fomos, não perderemos a esperança acerca daqueles
que agora são o que nós fomos. Todavia, caríssimos, sendo tão
grande a diversidade dos costumes e tão detestável a corrupção,
governai bem a vossa casa, orientai vossos filhos, vossa família.
Como nos compete falar-vos na Igreja, assim tendes o dever de fazer o
mesmo em vossas casas, para poderdes prestar contas exatas dos que
vos estão sujeitos. Deus ama a disciplina. É perversa e falsa
inocência relaxar as rédeas dos pecados. É muito inútil, muito
perniciosa a mansidão do pai para com o filho, que depois há de
sentir a severidade de Deus; e isto, não ele sozinho, mas com o pai
negligente. E então? Se o próprio pai não peca e não age como o
filho, nem por isso há de proibir a maldade do filho? Acaso não
pensará o filho que o pai faria de igual modo que ele, se não fosse
velho? O pecado do filho que não te desagrada, te deleita; portanto,
foi a idade e não o desejo que abandonou o pecado. Principalmente,
meus irmãos, cuidai
dos filhos que se tornaram fiéis, pelos quais respondestes para que
fossem batizados. Mas se, por acaso, o filho malvado não atender aos
avisos do pai, ou às censuras, ou à severidade? Faze a tua parte.
Dele há de exigir Deus a sua.
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