“Quando
tudo nos sorri no mundo, ligamo-nos a ele com facilidade, o enleio é
muito poderoso e o encanto muito forte. Se Deus nos ama, crede que
não consentirá que durmamos a nosso gosto neste lugar de exílio.
Perturba-nos os nossos divertimentos vãos; interrompe o curso das
nossas felicidades imaginárias, com receio de que nos deixemos
arrastar pelos rios da Babilônia, isto é, pela torrente dos
prazeres que passam. Crede com certeza, ó filhos da Nova Aliança,
que quando Deus vos envia aflições, é para quebrar os laços que
vos uniram ao mundo e para conduzir-vos à vossa pátria”.
1.
Mas, dir-me-eis vós, não posso meditar nos trabalhos que Nosso
Senhor sofreu por nós, quando as dores me atormentam. Pois bem; não
é preciso que o façais; mas que eleveis o mais que puderdes o vosso
coração a este Salvador e que façais os seguintes atos:
1.º
Aceitar essa dor, da Sua mão, como se O vísseis impô-la e
insinuá-la em vós;
2.º
Oferecendo-vos
para ainda sofrer mais;
3.º
Pedindo-Lhe, pelo mérito dos Seus tormentos, que aceite esses
pequenos incômodos em união com as penas que sofreu na Cruz;
4.º
Protestando que querereis não só sofrer, mas amar e estimar os
vossos males como enviados por uma tão doce mão;
5.º
Invocando os Mártires e tantos Servos e Servas de Deus, que gozam no
Céu, por terem sido afligidos neste mundo.
Há
muitas pessoas que estando doentes ou aflitas, seja pelo que for, não
se queixam, nem se fazem delicadas, porque pensam com razão que isso
seria uma fraqueza e covardia! Mas ao mesmo tempo desejam
ardentemente que todos as lamentem e tenham delas grande dó e as
consideram não só como aflitas, mas como pacientes e corajosas.
Ora,
eu confesso-o; isto é paciência: mas uma paciência falsa, que
afinal de contas, não passa de uma ambição fina e delicada e de
uma vaidade sutil. Elas têm glória, diz o Apóstolo, mas não aos
olhos de Deus. O verdadeiro paciente não se lamenta dos seus males,
nem deseja que os outros os lamentem; fala com simplicidade,
verdadeira e simplesmente, sem se lamentar, sem se irritar, sem se
fingir mais doente do que está. Se o lamentam, sofre com paciência
que o lamentem, a menos que o não lamentem de algum mal que não
tem, porque então declara modestamente que não tem essa modéstia,
e fica assim calmo, entre a verdade e a paciência narrando a sua
enfermidade sem se queixar.
|
São Damião de Veuster (Molokai) |
2.
Nenhum perigo há em desejarmos o remédio; pelo contrário, convém
procurá-lo com cuidado; porque Deus, que nos deu o mal, é também o
Autor dos remédios.
“É
permitido dizer com S. Paulo: ‘Desejo estar separado, isto é,
morrer, e estar com Jesus Cristo’. Mas não convém procurar a
doença nem rejeitar os remédios”.
Convém
pois aplicá-los contudo com tal resignação que, se a Divina
Majestade quer que a doença vença os remédios, acedei a isso; se
quer que o remédio produza efeito, bendizei-O também.
“Quanto
aos motivos para conservardes a saúde, além do da obediência para
que nos livre de todo o cuidado, deveis considerar o vosso corpo como
templo do Espírito Santo, que vos é dado a guardar, e que não
sendo vosso, tendes de dar conta dele ao seu Senhor. Fareis o mesmo
que se tivésseis a responder por uma capela que caísse em ruínas e
tivésseis obrigação de reparar. Além disso, o vosso corpo é
membro de Jesus Cristo; cuidai pois dele
como se Nosso Senhor se lamentasse do mau trato que de vós
recebesse. Tratai-o ainda como de
uma terceira pessoa, para quem usásseis de caridade. E lembrai-vos
que como filho de Deus Pai sois da sua família, e Ele quer que Ela
se conserve e mantenha. A nossa vida pertence-lhe; adquiriu-a pelo
Sangue do seu Filho: tem direitos sobre ela e quer que a conservemos
para dela usarmos em seu serviço”.
Quanto
sereis felizes se continuardes a estar debaixo do jugo de Deus,
humilde, doce e simplesmente! Ah! Eu espero que as vossas dores
aproveitem muito ao vosso coração.
É
agora que mais do que nunca podereis dizer ao vosso doce Salvador com
todo o
afeto e devoção: “Viva
Jesus! Viva Jesus! E reine sempre entre as nossas dores, visto que
nós não podemos reinar nem viver pela Sua morte”.
Esperai
pois Nele; e para esperardes Nele, pertencei-Lhe sempre. Imolai
muitas vezes o vosso coração ao Seu amor no altar da Cruz, no qual
imolou o Seu por amor de vós. A cruz é a porta real para entrar no
templo da santidade. Procurando-se por outra porta, não se
encontrará.
Se
a inveja pudesse reinar no reino do eterno amor, os Anjos invejariam
aos homens duas excelências que consistem em dois sofrimentos; uma,
é que Nosso Senhor sofreu na Cruz por nós e não por eles, pelo
menos tão inteiramente; a outra, é que os homens sofrem por Nosso
Senhor; o sofrimento de Deus pelo homem e o sofrimento do homem por
Deus.
A
perfeição não consiste na consolação, mas na submissão de nossa
vontade a Deus, sobretudo nas amarguras. Enfim, lembremo-nos de que a
obediência de Jesus Cristo se tornou perfeita quando a sua língua e
boca se abrasaram com o fel e vinagre, que lhe aumentou a sede cruel
que O devorava e então lembrar-nos-emos de que devemos estimar mais
a aridez e desolação de uma alma submissa do que a amorosa
languidez e o encanto delicioso da devoção.
E,
recordando-me desta cruz exterior que trazeis sobre o coração
dir-vos-ei: “Amai
a vossa cruz, porque é de ouro se a considerardes com olhos de amor;
e embora vejais de uma parte o amor do
vosso coração morto e crucificado entre cravos e espinhos, achareis
de outra uma multidão de pedras preciosas para compor a coroa da
glória que vos espera, se durante a vida levarmos amorosamente a de
espinhos com o vosso Rei, que tanto quis sofrer para entrar na Sua
felicidade”.
S.
João Damasceno ensina que, o Filho de Deus pela sua Encarnação
deixou todos os bens da vida e todos os males pela Sua Paixão; e que
em certo modo os uniu hipostaticamente à
Sua Divindade; de sorte que, assim como, nós veneramos tudo o que
tocou no Corpo de Jesus Cristo, devemos venerar todos os males, seja
de que natureza forem, por entrarem
todos em Seu Coração e nenhum deixar de tocar o Seu Sagrado Corpo,
ou deixar de ser abraçado pelos desejos de Sua Santa Alma. É
pensando nisto, que Santo Anselmo dizia que “adorava
todos os males desta vida como Sacramentos”.
Os Sacramentos produzem a graça nos que os recebem e a cruz
santifica todos os que a tocam: e como o Filho de Deus está sempre
presente na Eucaristia, também podemos dizer que está presente em
nossas aflições. Daqui nasceram as palavras cheias de fé e amor de
um religioso prostrado aos pés de um enfermo: “Adoro
a Jesus Cristo neste corpo enfermo; a minha fé mostra-o
de uma maneira menos real, mas mais sensível do que na hóstia
consagrada. Vejo-o aí presente, mas com uma presença de ação; não
só de um médico com o doente, de um pai com um filho, de um amigo
com seu amigo; mas como a alma com o corpo que anima, com a cabeça e
com os seus membros”.
|
Santa Ludovina de Schiedam |
3.
O nosso querido Jesus crucificado seja sempre um ramalhete para o
vosso peito, porque os seus cravos são mais desejáveis do que as
flores, e os espinhos do que as rosas, Deus meu! Desejo que sejais
santa e embalsamada com os aromas deste Salvador.
O
Pater que vós preferis pelas vossas dores não é proibido; mas, oh!
Meus Deus! Não me atreverei a pedir a Nosso Senhor pelas dores que
sofreu em Sua sacrossanta Cabeça que me passem as minhas. Ah! Ele
sofreu para que nós não sofrêssemos! Santa Catarina de Sena, vendo
que o seu Salvador lhe apresentava duas coroas, uma de ouro, e outra
de espinhos: “Oh!,
disse ela, quero
a coroa de dor para este mundo e a de ouro para o Céu”.
Quereria empregar a coroação de Nosso Senhor para obter uma coroa
de paciência em volta da minha cabeça.
Vivei
entre os espinhos da coroa do Salvador e dizei sempre: “Viva
Jesus!”
Esta carne é admirável em não querer nada de picante, mas a
repugnância que sentis não prova falta de amor, porque como julgo,
se crêssemos que dilacerando-nos Ele nos amaria mais,
dilacerar-nos-íamos, não
sem repugnância, mas apesar de repugnância.
Não
digais que quereis recobrar a saúde para amar e servir a Deus
melhor, porque é pelo contrário, para servir o vosso gosto, que
estimais mais do que o gosto de Deus.
A
vontade de Deus está quase sempre melhor na doença do que na saúde.
Se amamos mais a saúde, não digamos que é para amarmos e servirmos
a Deus melhor: porque quem não vê que é a saúde que nós buscamos
na vontade de Deus, e não na vontade de Deus a saúde?
Pobres
e miseráveis criaturas, nenhum bem podemos fazer neste mundo senão
sofrer alguma adversidade. Raras vezes servimos a Deus por uma parte,
que não O desgostemos por outra. Se por uma ação procuramos
unirmos a Ele, muitas vezes dEle nos separamos pelas más
circunstâncias de que essa ação está revestida. É por isso, que
convém deixá-lO nas Suas doçuras, e servi-lO humildemente nas
Suas dores.
|
Tereza Neuman |
4.
Convém obrar com Nosso Senhor, servindo-O humildemente, quando temos
saúde, e sofremos com Nosso Senhor, suportando com paciência as
dores e as aflições quando Ele no-las envia.
Isto
posto Teótimo, julgai se deveis chorar o tempo em que estivestes
ralado pelo sofrimento, pois que em um só destes momentos podeis
adquirir uma coroa de glória imortal. Quantas coroas em uma hora!
Quantas em um dia! Quantas em um mês! Quantas em um ano! “Estimaria
mais um só destes dias, dizia
um religioso, do que
todos os trabalhos dos conquistadores”.
Quando se pensa na grande eternidade, na qual nada sofreremos, onde
nada poderemos dar a Deus, e onde Deus nos encherá de dons, todas as
misérias desta vida parecerão muito amáveis e não há um momento
que não seja momento de humilhação e cruz. Como é pois precioso o
tempo desta vida e como é santa a obra, que se une à pena e
amargura!
O
verdadeiro tempo de expiar os nossos pecados e de experimentar a
graça do perdão, é o da doença, enquanto este espinho nos
atormenta e trespassa, quando a mão de Deus pesa sobre nós e que
Ele próprio nos impõe a penitência segundo a Sua infinita
misericórdia.
|
Santa Catarina de Sena |
5.
O coração que se une ao coração de Deus, não pode deixar de amar
e aceitar suavemente os golpes que a mão de Deus descarrega sobre
ele. Santa Blandina não encontrava alívio melhor para as feridas do
seu Martírio do que a cogitação suave que exprimia, suspirando
estas três palavras: “Eu
sou cristã”.
Bem-aventurado o coração que sabe empregar bem este suspiro!
O
único remédio para a maior parte das nossas doenças espirituais e
corporais, é a paciência e conformidade com a vontade de Deus,
resignando-nos ao Seu gosto, sem exceção nem reserva, na saúde, na
doença, no desprezo, na honra, na consolação, na desolação, no
tempo e na eternidade, aceitando de bom grado de Sua amabilíssima
mão, todos os trabalhos do corpo e do espírito, como se a víssemos
presente, oferecendo-nos para ainda sofrermos mais se lhe agradar.
Não podemos dizer quanto uma tal resignação e aceitação da
vontade de Deus torna os nossos sofrimentos puros e meritórios,
quando recebemos com doçura, paciência e amor o mel que nos faz
sofrer, considerando que Deus o quis desde toda a eternidade para Lhe
comprazermos e obedecer à Sua Providência. Logo que apareça o
agrado de Deus, devemos logo sujeitar-nos a ele.
Sabeis
que o fogo que Moisés viu sobre a montanha representava este Santo
amor, e que, como as suas chamas se alimentavam entre espinhos, assim
o exercício do amor sagrado, alimenta-se muito melhor entre as
tribulações, do que entre
as alegrias.
Que
tem a esperar um soldado a quem o seu capitão não quer
experimentar, mas, pelo contrário, quando o exercita nas empresas
laboriosas, dá-lhe assunto para esperar. Oh! Piedade delicada que
nunca experimentou aflições, piedade nutrida à sombra e no
repouso! Ouço-te discorrer a respeito da eternidade, pretendes a
coroa da mortalidade, mas não deves inverter a ordem do Apóstolo:
“A paciência produz a
prova, e a prova produz a esperança”.
Se pois esperas a glória de Deus, submete-se às provas que Deus
propôs aos servos. Eis uma tempestade que se levanta, eis uma perda
de bens, um insulto, uma contrariedade, uma doença; que, pois, tu
murmuras, pobre piedade desconcertada! Não te podes sustentar,
piedade sem fundamento? Tu nunca merecestes o nome de piedade cristã;
eras só um simulacro vão; eras um ouropel que brilha ao sol, mas
que não resiste ao fogo e que se desvanece no cadinho; és própria
para enganar os homens por uma aparência vã; mas não és digna de
Deus, nem da pureza do século futuro.
Tendes
pois ocasião de conhecer que Nosso Senhor deseja que aproveiteis em
Seu amor, por vos dar uma
saúde vacilante e muitos outros exercícios. Oh! Meu Deus! Como é
doce ver a Nosso Senhor coroado de espinhos na Cruz, e de glória no
Céu! Porque isto anima-nos a recebermos amorosamente as
contradições, sabendo que pela coroa de espinhos chegaremos à
coroa de felicidade. Uni-vos sempre estreitamente a Nosso Senhor, e
todos os males se reverterão em bens.
|
Santa Maria Madalena de Pazzi |
6.
Contemplai muitas vezes com os olhos interiores da alma a Jesus
Cristo crucificado, blasfemado, caluniado, abandonado, cheio de
tristeza, esfalfado de trabalhos; e lembrai-vos de que todos os
vossos sofrimentos nada são comparados aos Seus, nem em qualidade,
nem em quantidade, e que nunca sofrereis nada por Ele em comparação
com o que por vós sofreu.
Considerai
as penas que os Mártires outrora sofreram e as que tantas pessoas
ainda hoje sofrem, maiores sem comparação do que as que vos
afligem, e dizei: “Ah!
Os meus trabalhos são consoladores, e as minhas penas rosas, se me
comparo com os que sem socorro, assistência, nem alívio algum,
vivem em uma morte contínua, ralados de aflições mil vezes maiores
do que as minhas!”
Não
pensamos na morte quando temos saúde, e vós estais obrigado a não
pensar na vida. Evita-se a Cruz de Jesus Cristo, e é Ele mesmo que
ali Vos coloca; não queremos sofrer; queremos ser justos sem
paciência e nem virtude, e Nosso Senhor, que Vos ama mais do que vós
mesmos, se ocupa até o fim em purificar-vos, ao passo que abandona
os outros.
Oh!
Como sois felizes em terdes que sofrer alguma coisa por Nosso Senhor,
que tendo fundado a Igreja militante e triunfante na Cruz, favorece
sempre os que a levam! Visto não terdes que ficar neste mundo; bom é
que o tempo que nele estiverdes consagreis ao sofrimento.
Se
eu tivesse alguma coisa a desejar, seria que a minha morte fosse
precedida de uma doença prolongada; porque por este meio esfriaria o
afeto dos meus amigos e não teriam tanto cuidado em me visitarem. O
cuidado dos meus criados cansar-se-ia também a pouco, e receberiam
alívio com a minha morte.
_______________________
Fonte:
“Pensamentos
Consoladores de São Francisco de Sales”,
extraídos dos seus escritos
e coordenados segundo notas dos Mestres da Vida Espirituais, pelo Pe.
P. Huguet, S. M., Liv. III, Cap. II, pp. 230-239. Versão Portuguesa,
Livraria Salesiana Editora, São Paulo/SP, 1946.
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