1. Alma Fiel. Bendito sejais, Pai do Céu, Pai do meu Senhor Jesus Cristo, por Vos haverdes dignado lembrar-Vos de mim, pobre criatura.
Pai das misericórdias e Deus de toda consolação,1 graças Vos dou porque, apesar de minha indignidade, me confortais algumas vezes com as vossas consolações.
Sede para todo sempre bendito e glorificado com o vosso Filho Unigênito e o Espírito Santo Consolador, por todos os séculos dos séculos.
Meu Deus e Senhor, Santo Amigo de minha alma, quando descerdes ao meu coração, de alegria exultarão as minhas entranhas.
Sois a minha glória e o júbilo de minha alma. Esperança minha e meu refúgio no dia da tribulação.
2. Mas porque ainda é fraco o meu amor e imperfeita a minha virtude, preciso ser por Vós fortalecido e consolado; visitai-me, pois, Senhor, mais vezes e ensinai-me a vossa santa doutrina.
Livrai-me das paixões más, e curai meu coração de todas as afeições desregradas, para que sarado e purificado interiormente me torne apto para amar, forte para sofrer, firme para perseverar.
3. Grande coisa é o amor! Bem verdadeiramente inestimável. Só ele torna leve o que é pesado e suporta com igualdade de alma todas as desigualdades da vida. Leva a sua carga sem lhe sentir o peso e torna doce e saboroso tudo o que é amargo.
O amor generoso de Jesus impele a grandes cometimentos e excita-nos sempre ao mais perfeito.
O amor aspira a elevar-se e não se detém em coisas baixas.
O amor deseja ser livre e desembaraçado de toda afeição mundana para que o seu olhar penetre até Deus sem obstáculos e não seja retardado por nenhum bem nem abatido por nenhum mal da terra.
Nada mais doce que o amor, nada mais forte, nada mais sublime, nada mais amplo, nada mais delicioso, nada mais perfeito nem melhor no Céu e na terra; porque o amor vem de Deus e só em Deus, acima de todas as criaturas, pode descansar.
4. Quem ama corre, voa, vive alegre, é livre e nada o embaraça.
Dá tudo para possuir tudo e tudo possui em todas as coisas, porque sobre todas descansa no Único Sumo Bem, do qual dimanam e procedem todos os bens.
Não considera os dons, mas Aquele que os dá e O prefere a todos os bens.
O amor muitas vezes não conhece medida; a toda medida excede o seu ardor.
Nada lhe pesa, nada lhe custa; quer mais do que pode, não alega impossibilidades, porque julga que tudo lhe é possível e permitido.
Por isso tudo pode, realiza e leva a termo muitas coisas que esmorecem e prostram a quem não ama.
5. O amor está sempre vigilante e ainda no sono não dorme.
Nenhuma fadiga o cansa, nenhuma angústia o oprime, nenhum terror o amedronta; como chama viva e labareda ardente irrompe para o alto e passa livre.
Quem ama compreende o brado do amor. Bem alto clama aos ouvidos de Deus o afeto da alma abrasada que diz: “Meu Deus! Meu amor! Sois todo meu, e eu, todo vosso”.
6. Dilatai-me no amor para que eu aprenda a saborear no fundo do coração como é doce amar, e a derreter-me e nadar no vosso amor.
Empolgue-me o amor e eleve-me acima de mim mesmo nos transportes de seu enlevo.
Entoe o cântico do amor; siga-Vos nas alturas, Amado de minha alma, e em júbilos de amor desfaleça nos vossos louvores.
Ame-Vos mais que a mim; e a mim não ame senão por Vós, e em Vós ame todos os que deveras Vos amam, como ordena a lei do amor que de Vós irradia.
7. O amor é pronto, sincero, piedoso, alegre e afável, forte, sofredor, fiel, prudente, magnânimo, varonil e nunca busca a si mesmo, porque desde que alguém busca a si mesmo cessa logo de amar.
O amor é circunspecto, humilde e reto; sem moleza, sem leviandade nem preocupação de coisas vãs; sóbrio, casto, perseverante, tranquilo e recatado na guarda de todos os sentidos.
O amor é submisso e obediente aos superiores, vil e desprezível aos próprios olhos, dedicado e agradecido a Deus; n’Ele sempre confia e espera ainda quando não lhe saboreia as consolações, porque sem dor não se vive em amor.
8. Quem não está disposto a sofrer tudo e a fazer sempre a vontade do Amado não merece o nome de amante.
Quem ama deve por amor do Amado abraçar com prazer tudo o que há de mais duro e amargo, e dele não se separar por nenhuma contrariedade.2
1ª Reflexão3
O mestre que se interessa pelo adiantamento do seu discípulo, não se poupa a sacrifícios, para lhe formar o espírito na ciência e o coração na virtude.
Em todos os ramos da atividade humana, quem quer conseguir os fins emprega de boa vontade os meios indispensáveis. Porque é que o lavrador se fadiga a semear e cultivar os seus campos? Porque deseja colher um dia os frutos do seu trabalho. Jesus Cristo veio para nós, sofrendo; nós havemos de ir para Ele, sofrendo com resignação cristã. O amor verdadeiro é fecundo em boas obras.
“O meu preceito é que vos ameis uns aos outros, conforme eu vos amei. Ninguém pode mostrar maior amor do que aquele que dá a própria vida pelos seus amigos. Vós sereis os meus amigos se fizerdes o que eu vos mando”.4
Temos uma condição a cumprir, desde que queiramos entrar na amizade de Jesus Cristo: é mostrar em obras o nosso amor; é cumprir os Preceitos, que Ele nos impõe. O amor de Deus é por sua natureza difusivo e operativo; não sabe estar ocioso. Contemplai a vida de um São Vicente de Paulo, de um São João de Deus, de uma Santa Teresa de Jesus e dos outros Santos e Santas, e vereis quão admiráveis são os frutos que o divino amor é capaz de produzir.
O amor suaviza todas as amarguras.
2ª Reflexão5
Mas o amor tem seus tempos de prova, como seus momentos de gozo; e esta vida transitória deve ser contínuo exercício de amor, ou a consumação de um grande sacrifício, cujo prêmio será uma vida eterna ou um amor imudável.
Todos os caracteres da caridade, enumerados por São Paulo, nos recordam a ideia de sacrifício; e o mesmo amor infinito não pode manifestar-se plenamente a nós senão por um sacrifício infinito: “Deus amou por tal modo o mundo, que deu por ele seu Filho Único”.7
E nosso amor para com Deus não pode tampouco manifestar-se senão por um sacrifício, não igual, o que seria impossível, mas semelhante pelo dom de todo nosso ser ou uma perfeita obediência de nosso espírito, de nosso coração e de nossos sentidos, à vontade d’Aquele que tão extremosamente nos amou.
Então se verifica aquela união inefável que, na sua última hora, pedia Jesus Cristo a seu eterno Pai operasse entre Ele e a criatura resgatada. Enquanto a natureza viver ainda em nós, alguma coisa nos separa de Deus e de Jesus, e o amor de Jesus nos aperta que acabemos o sacrifício, e pronunciemos aquela última palavra que o mundo não compreende, mas que regozija o Céu: “Tudo está consumado”.8
Quando tu as pronunciarás, alma minha, estas palavras decisivas!
3ª Reflexão9
Ó meu caro Teótimo! Como a força deste grande amor de Deus sobre todas as coisas, deve ter uma grande extensão! Deve ele exceder todas as afeições, vencer todas as dificuldades e preferir a honra da benevolência de Deus a todas as coisas: mas eu digo, a todas as coisas absolutamente, sem exceção nem reserva alguma; e digo assim com um tão grande cuidado, porque se acham pessoas que corajosamente deixariam os bens, a honra e a própria vida por Nosso Senhor, as quais entretanto não deixariam por amor d’Ele alguma outra coisa de muito menor consideração.11
O amor é forte como a morte:12 pela morte a alma separa-se do corpo e de todas as coisas do mundo; pelo amor santo, a alma do cristão separa-se de seu corpo e de todas as coisas do mundo: e não há outra diferença, senão, que a morte faz sempre efetivamente o que o amor faz ordinariamente por seu afeto. Digo ordinariamente, porque às vezes o amor sagrado é tão violento, que efetivamente causa a separação do corpo e da alma, fazendo morrer os Santos possuídos do amor divino; morte muito e muito feliz, que vale mais que cem vidas.
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1. II Cor. I, 3.
2. Imitação de Cristo, Livro III, Cap. V, pp. 96-99. Tradução do Pe. Leonel Franca, S.J., 4ª Edição, Livraria José Olympio editora, Rio de Janeiro/São Paulo, 1948.
3. Imitação de Cristo, Livro III, Cap. V, pp. 142-143. Novíssima Edição, por Mons. Manuel Marinho, Editora Viúva de José Frutuoso da Fonseca, Porto, 1925.
4. Jo. XV, 12-24.
5. Imitação de Cristo, Presbítero J. I. Roquette, Livro III, Cap. V, pp. 1167-168. Editora Aillaud & Cia., Paris/Lisboa.
6. I Jo. IV, 16.
7. Jo. III, 16.
8. Jo. XIX, 30.
9. Imitação de Cristo, versão portuguesa por um Padre da Missão, Livro III, Cap. V, p. 147-148. Imprenta Desclée, Lefebvre y Cia., Tornai/Bélgica, 1904.
10. S. Francisco de Sales, “Trat. do Amor de Deus”, L. VI.
11. S. Francisco de Sales, “Trat. do Amor de Deus”, L. X, c. XIII.
12. Cânt. VIII, 6.
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