QUARTA PALAVRA1
“Deus meus, Deus meus, ut quid dereliquisti me?”2
“Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?”
A narrativa da Paixão e Morte do Salvador conta que, no dia da tragédia do Gólgota, houve trevas da hora sexta (cerca do meio-dia) até a hora nona (três da tarde), quando Jesus expirou.
“Parece que a própria natureza quis esconder o horror daquela vista. O céu, que estivera límpido durante toda a manhã, escureceu inopinadamente. Uma caligem densa, como se viesse dos pântanos do Inferno, ergueu-se por detrás das colinas, e, pouco a pouca, se espalhou pelos ângulos do horizonte. Um bando de nuvens negras achegou-se ao sol, àquele claro e doce sol de abril, que aquecera as mãos dos homicidas, cercou-o, assediou-o, e, finalmente, o cobriu com uma fita espessa de treva.
E, desde a hora nona, houve trevas em todo o país”.3
Essas trevas, de que falam os Evangelhos e até mesmo os escritores profanos, são verdadeiramente maravilhosas e inexplicáveis.4
Não encontramos uma causa que explique, naturalmente, o aparecimento dessas trevas. Era o tempo da Páscoa dos Hebreus, 15 do Nizan (7 de abril); a Páscoa dos Hebreus coincidia com a lua cheia, período em que é, cientificamente, inexplicável um eclipse total, uma vez que a lua está em oposição ao sol.
Não menos extraordinária foi a universalidade dessas trevas, que cobriram toda a terra, de um a outro hemisfério, pois era o próprio sol que perdia sua luminosidade, parecendo uma lâmpada que, lentamente, se extingue e se apaga. Havia apenas uma claridade mortiça, que permitia somente distinguir os objetos e as pessoas.
Não menos extraordinárias e maravilhosas são essas trevas em sua duração. Com efeito, essa estranha obscuridade persistiu, exatamente, do meio-dia às três horas da tarde, durante o tempo em que Jesus agonizou na Cruz, justamente a parte do dia em que o sol ostenta maior luminosidade.
Os judeus, cujo espírito se achava obscurecido pelo pecado e pelos pensamentos terrenos, não penetraram o sentido desse acontecimento maravilhoso e permaneceram endurecidos e obstinados.5
Trevas é símbolo do luto, da dor e da tristeza, na ordem temporal: na ordem moral, representa o erro e o pecado, que ensombram o espírito e perturbam a consciência…
Em trevas morais andava o mundo, antes que Jesus consumasse a Obra da Redenção.
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Havia menos de uma semana que Jesus fora recebido em triunfo na cidade santa de Jerusalém; havia menos de 48 horas, que, em roda do Mestre, tudo eram glórias, homenagens e aclamações…
Agora o cenário mudou, embora os atores sejam quase todos os mesmos… Oh! Exemplo terrível da inconstância e das mutações humanas!
Todos os amigos e beneficiados de Jesus, O abandonaram; nem mesmo o Anjo, que O confortou no jardim das Oliveiras, aparece nessa hora tétrica, em que dominam os poderes das trevas…
“De todas as horas dolorosas, a mais cruel é aquela em que o homem vê a solidão fazer-se em torno de si. Venha-nos ela repentinamente após uma desgraça, ou, antes nos cerque em seguimento à velhice: poucos escapam a esse isolamento dos últimos dias, e as vidas mais felizes naufragam, finalmente, na indiferença dos homens e das coisas. Que contraste entre a agitação, a solicitude, as lisonjas do começo e os abandonos do fim”.6
E Jesus experimentou essa espécie de tormento: o abandono.
Abandono exterior e interior.
“Exteriormente, tudo lhe falta. Da terra, não tem senão dores. Até de seu Corpo a proteção divina se retirou. Está estendido em um madeiro, no leito cruel da Cruz. Do alto da cabeça às plantas dos pés, é uma Chaga viva; as espáduas e os ombros estão cheios de feridas. Está suspenso da Cruz por Chagas vivas, os pregos atravessam seus pés e suas mãos e queimam como ferro em brasa; inumeráveis espinhos, como outras tantas pontas de fogo, atravessam sua testa e sua cabeça. Seu Corpo não está em posição natural; seus braços e pernas foram violentamente distendidos; os membros paralisam-se pouco a pouco; a vida pára no peito oprimido; os pulmões, engorgitados de Sangue, respiram com dificuldade; o Coração pulsa fracamente e vai extinguindo-se; é uma angústia mortal, sofrimentos supremos. O Sangue, que não pode mais descer da cabeça pelas veias intumescidas, produz na testa e no pescoço dores lancinantes; a testa arde em febre, as numerosas Chagas, expostas ao ar, inflam-se e causam excessivo sofrimento. O Salvador não é senão dores e sofrimentos: falta-lhe tudo: a terra e o Céu”.7
Nessa hora de suprema angústia, Jesus volta-se para o Pai Eterno, oferece-lhe, em prol da humanidade, os tormentos sem fim, as dores sem conta, as angústias sem nome, o Sangue que extravasa de suas Chagas…
Jesus recorre ao Pai e sente que também este O abandona.
A visão beatífica, que inundava de Santo júbilo a Alma de Jesus, já não se faz sentir; persevera, é verdade, mas os seus consoladores efeitos desaparecem… E então profere as palavras: “Meus Deus, meu Deus, porque me abandonastes?”
Estas palavras são as primeiras do Salmo XXXI. Segundo São Jerônimo, Jesus proferiu o primeiro versículo em voz alta, para chamar a atenção dos circunstantes e recitou baixinho o restante do Salmo até o fim.
Nesse canto dolente, Davi descreve com espantosa exatidão e estranha fidelidade os tormentos do Crucificado.
Assim fala o Profeta-Rei, na sua prece sentida e dolente:
“Meu Deus, meu Deus, porque me desamparastes? Não sou mais um homem, mas um verme, que se calca sob os pés; tornei-me o opróbrio dos homens e o objeto de escárnio do povo. Todos os que me viram escarnecem de mim; menearam a cabeça e vociferaram blasfêmias!
Esperou no Senhor, livre-o; salve-o, se é que o ama. Meu sangue correu como água; minhas forças extinguiram-se e minha língua aderiu ao véu palatino. Atravessaram meus pés e minhas mãos contaram todos os meus ossos; dividiram minhas vestes e lançaram sorte sobre minha túnica”.
Parece que só uma testemunha ocular poderia descrever com tanta fidelidade a figura do Crucificado.
A luz sobrenatural, que iluminava sempre o espírito de Jesus, já não projetava seus raios benéficos. O conforto espiritual, que alimentava a Alma de Cristo, havia desaparecido, deixando lugar às penas interiores, às torturas íntimas.
E a força divina, que sustentava o Filho de Deus contra todos os inimigos da terra e do Inferno, cessara de O amparar e fora substituída pela fraqueza natural...
Naquele momento, quem falava não parecia ser mais aquele que dissera: – “Meu Pai, eu sei que Vós me escutais sempre”. E proferiu estas palavras: – “Meu sustento é fazer a vontade daquele que me enviou a este mundo”.
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Para fazer-nos compreender a extensão e a profundez de seus tormentos, Jesus pronunciara aquelas palavras de queixa, que encerram admiráveis e salutares ensinamentos.
Em primeiro lugar, essa queixa do Salvador, deve fazer-nos compreender quão grandes sofrimentos e quão espantosas dores o Divino Mestre aceitou e suportou por nosso amor. Não fora essa palavra, não nos seria dado avaliar até que ponto chegaram as agonias e as angústias do Redentor. Deve também ser motivo para o nosso mais terno e profundo reconhecimento a quem tanto sofreu por nossa causa.
Em segundo lugar, o Divino Mestre quis ensinar-nos que sob o peso dos males e das tribulações dessa miserável vida, não é condenável uma queixa terna e respeitosa, quando acompanhada de submissão perfeita e inteira fidelidade a todas as provações, que Deus haja por bem enviar-nos. “Faça-se vossa vontade e não a minha”…
Em terceiro lugar, quis o Redentor alcançar-nos de Deus a graça de jamais nos queixarmos, a não ser à imitação dele.8
Jesus, tendo assumido o encargo de satisfazer pelos nossos pecados, devia submeter-se a todas as penalidades a que estamos sujeitos. A Vítima augustíssima, depois de ter suportado todas as penas e todos os tormentos deste mundo, devidos às nossas culpas, deveria sofrer ainda, por amor de nós, as penas do Inferno. Mas Jesus era Deus… e, como Deus, não podia ser condenado ao Inferno… A caridade infinita encontrou o meio de resolver esta dificuldade. Jesus experimentou a maior e a mais terrível das penas do Inferno, o mais doloroso dos tormentos dos condenados: o abandono e o desamparo de Deus.
É essa a explicação última do brado angustioso de Jesus: “Meus Deus, Meu Deus, porque me abandonastes?”
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Ao divino abandonado do Gólgota, é que devemos invocar nos supremos desfalecimentos e nas supremas amarguras deste vale de lágrimas.
O que Jesus experimentou naqueles momentos terríveis, em que se viu abandonado do Céu e da terra, de Deus, seu Pai, e dos homens, pelos quais morria, inspira-nos uma confiança ilimitada de que seremos sempre atendidos todas as vezes que implorarmos socorro.
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“Oh! Meu Jesus! Lanço-me, com amor e reconhecimento, nos horrores salutares do vosso abandono. Desde hoje compreendo o que é abandonar a Deus e ser de Deus abandonado. Ah! O meu coração está preso às criaturas, fez-se escravo delas e, para agradar-lhes, abandonou a Deus: – ultraje infinito, que revolta a sua Majestade e a sua Paternidade! Mas Vós quisestes reparar divinamente este ultraje, ó meu Jesus, e por nós sofrestes o desprezo e o abandono do vosso próprio Pai. Ah! Eu me abraço à vossa Cruz, para nela tornar a encontrar o meu Deus, e pelos abandonos cruéis a que Vos votaram, peço-Vos, Senhor, não permitais que eu torne a abandoná-Lo, nem que Ele me desampare jamais a mim”.9
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1. “Espírito e Vida” – As Sete Palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo Pe. J. Cabral, IV Palavra, pp. 54-62, da Coleção Cristo Redentor. Empresa Editora A.B.C. Ltda, Rio de Janeiro, 1938.
2. Math. XXVII, 46.
3. Giovanni Papini – “Historia de Christo” – Págs. 519 e 520.
4. Phlegon e Talles, em seus escritos, fazem referências a esse acontecimento extraordinário.
5. Monteiro – “Reflexões Evangélicas” – Pág. 555.
6. Perroy – “La Montée du Calvaire” – Pág. 309.
7. Pedreira – “A Paixão de Jesus Christo” – Pág. 215.
8. Pinart – “O Alimento da Alma Christã” – Pág. 342.
9. Weber – “De Gethsemane ao Golgotha” – Pág. 178.
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