2ª Meditação
Segunda-feira
A Utilidade do Sofrimento
serve de Alívio na Tribulação.
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I – O Sofrimento purifica a alma.
A tribulação é nas mãos de Deus o instrumento mais poderoso para lavrar as almas escolhidas, conseguindo facilmente por meio dela aquilo a que, por fim, se reduz todo o nosso aproveitamento; isto é, purifica-nos, ilumina-nos e aperfeiçoa-nos.
Em primeiro lugar, limpa-nos não só dos pecados, como depois veremos, senão também de toda a sorte de imperfeições. Que seria do ouro, se não fosse o crisol? Quão pouco se diferenciaria da terra! Que seria das almas virtuosas a quem a tribulação não visitasse? Ficariam sempre cheias de imperfeições e não passariam nunca de uma virtude vulgar.
Como morreria nelas o amor-próprio que tanta guerra lhes faz sempre, que infecciona com o seu veneno até as obras mais santas, que tão sutil se mostra para buscar o seu próprio interesse, ainda naquelas ações em que às vezes parece buscar-se unicamente a glória de Deus?
As consolações espirituais apartam-nos, é verdade, da terra; mas nunca nos apartam totalmente de nós mesmos; antes são a causa de procurarmos com mais avidez a nossa própria satisfação, crendo que assim o podemos fazer sem o menor mal e sem remorso nenhum. O sofrimento, pois, é muitas vezes o remédio mais eficaz, e ainda o único, para nos curar de tão grande enfermidade. Se ele não fosse, as nossas paixões na vida espiritual não mudariam de natureza, senão de objeto; e, em vez de morrerem, desprender-se-iam do que tinham de mais tosco e baixo, para conservarem o que tinham de mais elevado, ou melhor, de mais diabólico.
Ó santas tribulações, remédio de todas as nossas desordens! Oh! Se os homens vos conhecessem! Certamente, em lugar de fugirem de vós, como se fosseis inimigas, vos abririam os braços e vos estreitariam ao coração.
Acontece às vezes que uma alma está toda cheia de si, estima-se como uma coisa grande e ainda diz no seu coração como aquele soberbo da parábola evangélica: “Não sou como os demais homens”. Mas, nisto sobrevém-lhe uma grande adversidade; assalta-a uma doença grave, apodera-se dela uma desolação. Logo se humilha e abate; e, como a péla inchada que, perdendo o ar, se contrai e aperta, assim o coração cheio de si mesmo cede ao peso da tribulação e finalmente se rende, podendo dizer com Davi: Muito bem, Senhor, que me humilhaste.1
Considera, pois, os altíssimos desígnios de Nosso Senhor em te afligir com trabalhos e espanta-te da tua cegueira em fugires tanto deles, como até agora tens feito. Pede-lhe humildemente perdão, e que daqui em diante te dê força para O servires na tribulação, a qual é, sem dúvida, o tempo das suas misericórdias mais assinaladas: A misericórdia de Deus mostra-se, sobretudo, na tribulação.2
II – O sofrimento ilumina-nos.
Considera que o Senhor, por meio do sofrimento, além de purificar a nossa alma das imperfeições, é também a sua luz na prática da virtude: Caminharão iluminados com a luz das tuas setas.3 As setas com que Deus fere a tua alma são setas luminosas, que ao mesmo tempo descobrem o caminho e dão alento para andar: Quem não é ferido destas setas, o que é que sabe?4 Não se conhece a si nem conhece a Deus, isto é, ignora os dois objetos a cujo conhecimento se dirige toda a ciência do espírito: Conheça-vos a vós, conheça-Me a Mim.5
Não se conhece a si; porque quem não é provado com o fogo da adversidade, de certo não vê o que tem em seu coração; ante, no meio da abundância e felicidade, forma de si uma ideia muito diferente do que é na realidade. Eu disse no tempo da prosperidade: Não experimentarei mudança em tempo nenhum.6 Se tivéssemos sempre lua cheia, e não somente de quando em quando, quem não diria ser própria deste astro a luz que o ilumina? Mas, porque umas vezes a vemos faltar-lhe a luz e outras nos aparece toda radiante, ainda os mais rudes do povo conhecem facilmente, que não vem dela aquele resplendor, senão do sol.
Ai das almas, se sempre estivessem em prosperidade, sobretudo, no tocante ao espírito! Dificilmente deixariam de atribuir a seus próprios merecimentos a posse daquela paz e ventura. Por isso, convém que Deus Nosso Senhor, para as fazerem entrar no conhecimento das suas misérias e do seu nada, empunhe de vez em quando a vara do rigor; convém que se lhes mostre irado, que lhes tire a luz, que os prive daquele vigor de que antes o Seu divino rosto as enchia: Eu sou o homem que vejo a minha miséria na vara da indignação de Deus.7
Não conhece a Deus. Enquanto a alma, guiada pela mão do Senhor, não entrar pelo caminho real da Cruz que todas as almas grandes percorreram, enquanto não se sentir falta de toda a consolação humana, deixada, perseguida, desprezada: só sabe de Deus o que a fé lhe ensina. Conhecia-Vos, Senhor, como de ouvido,8 dizia o Santo Jó antes da tribulação e no meio da prosperidade. Mas, tanto que se viu despojado de todos os bens, feito todo uma chaga, desamparado dos amigos, cheio de amargura, debaixo de um Céu de bronze, e reduzido a não ter na terra senão aquele monte de podridão e uma telha com que a limpar do próprio corpo; então, é que a sua mente de tal maneira se esclareceu, que pode dizer: Agora, Senhor, te veem os meus olhos.9
Onde estão, pois, aquelas almas tímidas que, mal veem assomar uma doença ou tribulação, logo se queixam que não podem praticar o bem? Como é possível que a tribulação assim as embarace, se nela precisamente está o meio mais eficaz para a virtude? Deus Nosso Senhor vale-se das trevas, para alumiar a nossa cegueira. Com lodo abriu os olhos do cego de nascença; fazendo-nos sentir as nossas misérias, reduzindo-nos ao estado de pobreza, privando-nos de toda a luz e dando-nos outras provas, abre-nos também os olhos do espírito e dispõe-nos para que O conheçamos a Ele e nos conheçamos a nós.
Como as almas do Purgatório, que não chegam a ver a Deus senão depois de terem passado pelas chamas purificadoras, deixando nelas tudo o que tinham de terreno e mundano; assim nós neste mundo não estaremos nunca em disposição de ver a Deus, com aquela luz que a seus amigos comunica, enquanto não tivermos passado pelo fogo da tribulação. Tu, por conseguinte, que tantas vezes pediste luz a Nosso Senhor, para O conheceres a Ele e para te conheceres a ti, como não cais na conta de que com esta oração pedias te admitisse a ser participante da Sua Cruz? A noite mais escura daquelas desolações, que tanto te afligem o coração, é a disposição mais próxima para que o Sol divino amanheça em ti.
Ganha, pois, bom ânimo; confunde-te da tua passada covardia; pede perdão ao Senhor e suplica-lhe que, se é necessário o fel das amarguras, para te abrirem os olhos da alma, como a Tobias os do corpo, não demore um instante em o aplicar-te, por mais que doa à natureza rebelde; mas que ao mesmo tempo te conceda a graça de saberes tirar da tribulação o fruto que Ele deseja.
III – O sofrimento aperfeiçoa-nos.
Considera finalmente que a tribulação, depois de purificar e esclarecer a alma, leva-a também à perfeição, exatamente como o fogo, o qual, depois de tirar ao ouro toda a escória da terra, depois de lhe dar aquele brilho, aquilata-o a tão subido grau, que já não há chamas que o façam minguar em nada. Por isso mesmo que eras agradável aos divinos olhos, foi necessário que a tentação te provasse, disse a Tobias o Arcanjo São Rafael.10 Como se lhe quisesse dar a entender que as obras de caridade e religião: dar esmolas, enterrar os mortos e render verdadeiro culto ao Senhor; ainda que bastavam por si para o purificar e esclarecer, contudo, sem o sofrimento não o poderiam fazer perfeito: A paciência é a que aperfeiçoa as nossas obras,11 a que dá a última demão à santidade, a qual entre as consolações apenas estava esboçada.
E a razão é clara. Porque, havendo dois gêneros de virtudes, umas que consistem mais nas obras, outras que consistem mais nos sofrimentos, estas últimas são as de maior estima e valia, por servirem à própria custa a caridade, que é a rainha de todas. Nas obras, pode tomar parte a natureza, e não pouco; no sofrimento, em vez dela achar o seu próprio cômodo, acha o seu desprezo e a morte.
Quando a alma e o corpo desfrutam de completa felicidade, quem pode saber se vivem para Jesus ou se se buscam a si mesmos nessa felicidade que o Céu lhes dá? Mas, quando o seu peso te oprime o corpo e aperta o coração, sem contudo perderes a resignação e a paz; então, bem podes crer que a graça é a que te fortifica e, se te deixas guiar, será também a que te conduzirá ao puro amor de Deus. Porque, próprio é do amor deste Senhor nascer entre as consolações espirituais; mas para chegar a ser forte, tem que passar pelo cadinho do sofrimento.
Tira daqui quão injustamente te queixas quando, suspendendo Nosso Senhor a luz da sua graça e os ternos sentimentos de devoção, te deixa em estado de puro sofrimento. Então, parece-te impossível praticar a virtude; mas ser-te-á também impossível o padecer? Pois esse é precisamente o fruto que de ti espera Deus Nosso Senhor; e às tuas queixas bem pode responder com aquelas suas divinas palavras: Não sabes o que pedes. Podes beber o cálice da Minha Paixão?12
Oh! Ditoso de ti, se souberes corresponder à graça, sofrendo e calando, à maneira de paciente cordeirinho que se oferece como vítima ao Senhor! Este sofrer silencioso e com tanta resignação na vontade divina será de maior merecimento do que todas as mais obras, quaisquer que sejam. Esta estrada coberta de espinhos levar-te-á bem depressa a um grau de perfeição a que dificilmente chegarias por outro caminho mais plano e agradável: Meus filhos delicados pisaram ásperos caminhos.13
Oração a Nosso Senhor açoitado à Coluna
para alcançar a Paciência
Amabilíssimo Redentor: que lei é esta que o mundo usa agora contra Vós, declarando-Vos como inocente e açoitando-Vos como culpado? Ah! Senhor! É a lei do vosso amor, que não conhece outra senão a que conduz ao meu aproveitamento. Eu sou aquele a quem são devidas essas Chagas, eu fui o que mereci essa crueldade desapiedada; e contudo, apesar de ser o culpado, vejo-me tão poupado e sem trabalhos, quando sobre o vosso Corpo Santíssimo caem os golpes como tempestade desfeita. E o pior é que, se para meu bem lançais às vezes mão do açoite, se para iluminar a minha alma a feris com as setas da vossa luz, se me quereis aperfeiçoar algum tanto naquele mesmo bem que Vos dignastes pôr em mim e que eu misturo de tanto mal; logo rompo em queixas e lamentos, caio desalentado em terra e me dou por perdido de todo, sem advertir que é o amor-próprio a buscar-se sempre a si, sob pretexto de maior bem, e a fugir sempre da cruz para me levar miseravelmente a seus enganos.
Mas a tudo isto, que posso eu responder senão confessar diante de Vós a minha miséria e implorar remédio para ela? Em tudo me pareço comigo, em tudo me porto como sou, como criatura miserável, cheia de trevas e fraqueza. A Vós, ó fortaleza da minha alma, a Vós toca mostrar-Vos como Sois, isto é, como Senhor onipotente que com um só sinal podeis mudar este pobre coração num coração semelhante ao Vosso. Uma gotinha daquele Sangue divino, que se derramou a torrentes e é pisado por aqueles mesmos por quem foi derramado, pode dar-me essa constância invencível que tanto desejo.
Para a alcançar, entrego-me todo a Vós; atai-me, Senhor, muito apertadamente à vossa coluna; açoitai-me, atribulai-me como vos aprouver. Não olheis para a minha rebeldia; ponde os olhos unicamente no meu verdadeiro bem e na Vossa divina glória, a qual sobressairá triunfando da minha fraqueza. Bem vejo, que nem sei pedir como convém; mas falem por mim essas Chagas que Vos cobrem dos pés à cabeça. Obtenham-me elas da Vossa bondade infinita a graça que vos supliquei e da qual me terei sempre por indigno, enquanto não me livrarem desta minha indignidade os seus merecimentos e eficácia infinita. Amém.
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1. Bonum mihi, quia humiliasti me (Ps. 118).
2. Speciosa misericordia Dei in tempore tribulationis (Ecl., XXIV, 26).
3. In luce sagittarum tuarum ibunt (Habac., III, 31).
4. Qui non est tentatus, quid scit? (Eccl., XXX, 9).
5. Noverim te, noverim me.
6. Ego dixi in abundantia mea: Non movebor in aeternum (Eccl., XXIX, 7).
7. Ego vir videns paupertatem meam in virga indignationis ejus (Thren., III, 1).
8. Auditu auris audivi te (Job., XLII, 5).
9. Nunc autem oculus meus videt te (Job., XLII, 5).
10. Quia acceptus eras Deo, necesse fui ut tentatio probaret te (Tob., XII, 12-13).
11. Patientia opus perfectum habet (Jac., I, 4).
12. Nescitis quid petatis. Potestis bibere calicem? (Math., XX, 22).
13. Delicati mei ambulaverunt vias asperas (Baruch., IV, 26).
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