Normas Seguras,
para se Formar uma Santa Família1
I
Suponhamos um jovem casal, que a impulso destes motivos elevados, e animado destas boas disposições, contraiu uma aliança aprovada dos pais, e que enche de alegria e de esperança toda a sua família.
As festas do noivado passaram sem dissipações mundanas, sem danças lascívias, sem nenhuns desses excessos que maculavam as bodas pagãs.
Resolveram os noivos ter ninho próprio e vivenda à parte, o que é em verdade o mais prudente conselho.
Não diremos que seus dias serão tecidos de fios de ouro, e que uma felicidade completa soprará em sua nova existência. Os poetas e romancistas têm licença para lhes fazer estas promessas exageradas, que a realidade não se encarrega de cumprir. Mais modestos, porém mais seguros, serão nossos votos. Nós diremos, que, se eles tiverem o verdadeiro espírito cristão; que, se eles cumprirem religiosamente os deveres de seu novo estado, terão, sim, cuidados, e muitos cuidados, trabalhos, e muitos trabalhos, tribulações, e muitas tribulações, como diz São Paulo, e é condição inevitável desta vida mortal; mas também terão aquelas alegrias e consolações que acompanham as consciências puras; aquele ânimo e conforto que dão as imortais esperanças; aquela suave resignação que dulcifica todos os sacrifícios.
Não há céu sem nuvens, não há rosas sem espinhos, não há mares tão bonançosos em que soprem sempre brisas serenas. A vida humana tem também seus vaivéns e alternativas, o berço toca ao túmulo, e os risos estão bem perto das lágrimas. É inútil inventar, para divertimento da imaginação, cópias falsificadas da felicidade. A única possível, a única real é aquela de que o Cristianismo criou o tipo sublime, e que consiste na aceitação resignada e amorosa do sacrifício.
Os nossos dois consortes não são favorecidos dos bens da fortuna, e nem sentem grandes desejos de possuí-los, contentam-se de adquirir o seu pão com trabalho honrado, e acham que esse pão, abençoado de Deus, tem mais sabor que esquisitas iguarias.
Vive o marido quase todos os dias, ausente de casa, no lidar de seus negócios; mas o sentido, mas o cuidado, mas a alma toda lá lhe ficam naquele bendito remanso de seu lar. É a praia quieta onde o destino de sua vida está ao abrigo dos ventos e das tempestades. Para ali volta sempre, como quem vai matar longas saudades. Acha os carinhos, acha os cuidados da esposa, acha o interior doméstico em ordem perfeita, e o trabalho que ela adianta para ajudá-lo na sustentação da família.
Vivem em paz, porque se desculpam mutuamente. O marido corrige a mulher com autoridade temperada de amor; a mulher corrige o marido com aquele mimo e delicadeza que seu bom coração lhe inspira. Têm tristezas, mas a Religião as dissipam-lhes. A oração, os Sacramentos, as boas leituras, são para eles o verdadeiro rei da dor, o bálsamo preparado e eficacíssimo para as feridas mais dolorosas do coração.
Com os filhos dobram os trabalhos, mas também cada um deles estreita cada vez mais o laço que liga os pais. São recebidos estes anjinhos como presentes do Céu; e cada um que chega é sempre bem-vindo, pois sabem que a Providência, que estende seus cuidados até os filhos das avezinhas, não os deixará sem sustento. Não é nesta casa que se terá “o receio indigno e às vezes infame, de ter muitos filhos”. Em uma palavra, dados os devidos descontos de pequenas dissenções, de doenças, de perdas de entes queridos, e outros amargos acidentes que podem atravessar a vida, esta passará relativamente feliz, sob aquele teto abençoado, graças a influência do espírito cristão.
Os que vivem e se casam sem Religião, fundam esperanças de viver sempre unidos e felizes só naquele amor imperfeito, apaixonado, sensual, caprichoso, inconstante, que se desbota logo, e perde o poético encanto na saciedade da posse e no realismo da vida; desflora-se e murcha depois da primeira quadra toda risos; espécie de primavera que passa ligeira, e não volta mais, no giro sombrio das existências mundanas.
Pelo contrário, os que vivem e se casam com a Religião, animados do verdadeiro espírito do Cristianismo, sabem muito bem que a bela concórdia e harmonia de dois corações, de duas almas imortais, se funda na virtude, no cumprimento exato do dever, na observância da eterna ordem que Deus mesmo estabeleceu na família, e que só assim cimentadas podem, essa união e concórdia, resistir aos embates do tempo e às alternativas e mudanças das coisas e dos homens.
II
É a família um concerto; ora, num concerto, o belo, o harmonioso, resulta de fazer cada qual bem a sua parte. É comparação graciosa de Santo Agostinho. Notai, diz discretamente o Santo Doutor, como num coro de músicos, diversíssimas sortes de instrumentos e vozes tocam e cantam, com variedade de sons agudos, graves, médios; e contudo, fazem todos juntos maravilhosa consonância. Por quê? Porque cada um executa bem a parte que lhe toca. O baixo não sobe ao agudo, nem o agudo desce ao médio, e todos vão de concerto. Execute cada qual em casa a sua parte; mande quem pode, obedeça quem deve; e logo, diz Santo Agostinho, a casa está em harmonia; que não é esta outra coisa mais que a ordenada concórdia do mandar e do obedecer.
Por isso, é de suma importância para a paz e ventura doméstica, o saber cada um bem o seu papel, a sua posição, os seus direitos e deveres, no seio da família tomando por luz que guie seus passos, não as máximas falsas do mundo, mas os documentos e ditames da Sabedoria de Deus nas Escrituras Sagradas, principalmente em São Paulo, que formulou de um modo admirável a lei constituinte da família.
Eis aqui, segundo o grande Apóstolo, o que deve ser o marido para com sua esposa:
O marido, diz ele, é cabeça da mulher, isto é, seu chefe, e seu superior, o princípio que a governa e dirige com suave império, e a quem ela obedece com amorosa sujeição. Não é um chefe tirânico, um superior despótico, o senhor de uma escrava, não; seu domínio, sua superioridade sobre a mulher, é como o da cabeça sobre o corpo, brando, influindo vigor, cheio de benevolência; ou antes, é como o domínio e a autoridade que tem Jesus Cristo sobre a sua Igreja.
O marido é cabeça da mulher, como Cristo é Cabeça da Igreja, diz São Paulo.2
Esta palavra quebrou os ferros da escravidão em que gemia a mulher nos tempos do paganismo. Como já dissera o Apóstolo: Trate o marido a mulher, como Jesus tratou a sua Igreja; e nesta altura vá tomar a norma e o exemplar de seu procedimento. Pois que! Foi Cristo um tirano? E maltratou jamais a Igreja?
A considerou como vil escrava? De nenhum modo. Como sua Esposa A tratou, e com tamanho e extremado amor, e com tão generosa dedicação, que deu a vida por Ela. Pois, seja a autoridade do marido como a de Cristo: eficaz, firme, justa, mas temperada de amor, e a respirar benevolência.
Por isso, acrescenta o Apóstolo: “Maridos, amai vossas mulheres, como Cristo amou a sua Igreja, e se sacrificou por Ela, para santificá-lA, purificando-A no banho da água pelo Verbo da vida; para assim apresentá-lA diante de Si toda brilhante de glória, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, mas Santa e Imaculada”.3 Parece que tinha em vista o Apóstolo aqueles que das fraquezas e imperfeições das mulheres tiram motivo ou pretexto para desculpar a dureza e desumanidade com que as tratam. Ó maridos! Contemplai, diz São Paulo, em que estado se achava a Igreja, quando Jesus Cristo a escolheu e desposou, e com que caridade, paciência, constância, não só a não desprezou pelas suas manchas, senão que as lavou com Seu precioso Sangue. Com quanto maior razão devem os maridos tolerar os senões, manchas e enfermidades de suas consortes, e, se poderem, também curá-las.4
III
Mas São Paulo, ainda não satisfeito, usa de outra comparação para dilucidar mais seu pensamento. Os maridos, diz ele, devem amar suas mulheres como a seus próprios corpos. “Vede, observa egregiamente um orador, vede com que suavidade, e, por assim dizer, com que política de amor, a alma se faz obedecer do corpo. Por exemplo, quer a alma que se vá a casa, e manda ao pé que se mova para aquela parte. Quer a alma saber alguma coisa, e manda ao ouvido que escute, e ao olho que veja. Mas notai que, não deixa ao pé, ao ouvido, ao olho toda a fadiga da ação; também ela concorre com a cabeça a todas as operações, e vê com o olho, e ouve com o ouvido, e caminha com o pé. E se o olho de débil não pode ver; se o pé, de cansado não pode caminhar, nunca a ouvireis dizer: maldito olho, maldito pé… (e outras imprecações semelhantes), antes dele se compadecer, vigora-o, ajuda-o”.
Tal há de ser o governo de amor a que os maridos sujeitarão suas mulheres. Ninguém tem ódio a seu próprio corpo, diz mais o Apóstolo. Portanto, como a alma não odeia o seu corpo, não se pode conceber como possa um marido odiar e maltratar sua mulher, que é sua própria carne, e outro ele.5
E assim como a alma, por ser princípio dirigente e ativo, nutre e anima ao corpo, e cuida com sumo desvelo e vigilância em provê-lo de alimentos, de vestuário, de morada, de todo o necessário; da mesma forma, desvele-se o marido com sumo empenho em satisfazer as justas exigências de sua esposa; de modo que nada necessário lhe falte, suprindo a tudo nos limites de suas posses. Por isso, trabalhe com diligência para que sua mulher passe satisfeita; e vele pelo bem dela, como pelo seu próprio bem. O marido desleixado, preguiçoso, perdulário, ou avaro, torna infeliz a sua esposa, e acarreta para casa mil desgostos, desordens, escândalos e vergonhas.
Outra semelhança: A alma, uma vez unida por Deus ao corpo, não o abandona até a morte. “Juntos nascem, como diz Vieira, juntos crescem, juntos vivem, juntos caminham, juntos param, juntos trabalham, juntos descansam, de dia e de noite, dormindo e velando; em todo tempo, em toda idade, em toda fortuna; sempre amigos, sempre companheiros, sempre abraçados, sempre unidos. ‘Esposou’, digamos assim, a alma o seu corpo, e jamais emigrará para outro. Do mesmo modo, devem os maridos ficar fiéis às suas esposas até a morte, guardando-lhes a fé, jurada em face dos altares”. Lembrem-se, que não as receberam das mãos de Deus, sob o véu do pudor, para abandoná-las depois por outras mulheres. Quaisquer que sejam as vicissitudes da vida, na saúde como na doença, nos dias das alegrias como no dia das lágrimas, na próspera como na adversa fortuna, um marido extremoso fará à sua cara consorte, ao dimidium animae suae, fiel e constante companhia. O amor dos esposos cristãos, é capaz desta constância, porque é puro. Não se mancha com excessos. Não transgride os limites marcados pelo recato e pela continência. Os esposos cristãos sabem que nem tudo lhes é permitido, e respeitam a santidade do tálamo e a honra do Sacramento. Ora bem; esse amor assim casto, rijamente temperado na pureza e na mortificação cristã, que o impedem de degenerar em mole sensualismo, resisti a tudo, sobrevive a tudo, e é capaz dos mais heroicos sacrifícios.
É memorável um caso que referem as histórias. Domingos Cataluso, varão nobre e de alto emprego, amava sua mulher, e com tanto primor, e com tanta fineza, e com tais extremos, e tão cristãmente a amava, que, sendo ela atacada da lepra, e parecendo mais um cadáver que um corpo vivo, ele, nem pelo horror que inspirava à vista a mísera esposa, nem pelo perigo do contágio, nem pelo nauseante odor que das pústulas exalava, lhe proibiu jamais a mesa e o leito. Porque o amor conjugal disfarçava tudo e achava até prazer em tratar com ela; considerando-a segundo a palavra de Deus, como sua própria carne.
O que não pode a fé conjugal, unida a um amor fundado na divina caridade!6
IV
Citemos ainda uma palavra de ouro de São Paulo: Maridos, amai as vossas mulheres, e não lhes sejais amargos.7 Amargos, com efeito, nas palavras e no trato são alguns maridos. Repreendem com aspereza; censuram acremente os defeitos das mulheres; lançam-lhe de contínuo em rosto as faltas; tocam até no melindre do nascimento, nos pais delas, no diminuto dote que trouxeram, em sua falta de beleza; o que tudo são bocados amargosos que eles lhes dão a devorar; donde redundam muitas perturbações na família.
Ó maridos! Ouvi São Paulo: Amai vossas mulheres, como Jesus Cristo amou a sua Igreja, e não sejais amargos para com elas!
Entrai em vossas casas com vulto sempre sereno, e com um doce sorriso nos lábios.
São Bernardo, ao entrar na Igreja, dizia: “Cuidados, ficai aqui que eu já volto”. Dizei o mesmo ao entrar no santuário de vosso lar: “Enfados, tristezas, trabalhos, embaraços de negócios, ficai-vos aqui fora, que eu logo volto”. E aparecei à vossa esposa, à vossa família, como o sol, irradiando sobre todos luz, alegria, conforto”.
Ó, não imiteis aqueles que são melífluos, cheios de afagos e agrados só com as pessoas de fora; que, ainda diante das visitas, mostram ótimo semblante aos de casa; mas, logo que elas volvem as costas, fecham o rosto, e continuam enfadados, cheios de azedume, insuportáveis. Lembrai-vos que essa querida companheira, que esses entes estremecidos, vivem convosco, vivem da vossa mesma vida, dentro do estreito recinto da mesma casa; e que tudo o que eles podem gozar de paz, de contentamento, de serena felicidade, vem principalmente de vós, que sois o centro e a alma desta pequena tribo.
Vossa tristeza e aborrecimento estendem-se, como uma nuvem negra, sobre todos; vossa afabilidade e alegria faz palpitar jubilosos aqueles corações.
Mostrai-vos, pois, com todos, amável e afetuoso; são ecos, são reflexos vossos, são porções de vossa alma. Espalhai a ventura em torno de vós; tereis em compensação olhares a vos afagarem, rostos amigos a vos sorrirem, mãos a se estenderem para vós; achar-vos-ei, enfim, rodeados dessa doce e calma atmosfera de afetos, “desse qualquer que seja de cordial, que não se extingue jamais, que se renova sempre”.
V
Dai à vossa esposa provas de maior confiança. Deixai-lhe todo o regime da casa, assim como a direção de certos serviços; e ponde à sua disposição os fundos necessários, para que faça ela mesma as despesas. Esta confiança muito a penhorará, e a interessará vivamente no bom andamento dos negócios da família.
Consultai-a nos casos mais graves.
A mulher cristã tem intuições sublimes, e certo tato instintivo que raras vezes a engana.
Trabalhai para assegurar e aumentar os recursos de vossa casa. O ócio seria o sorvedouro de vossa honra e de vossa dignidade. Vagar pelas ruas e pelos lugares, sem um emprego, sem uma ocupação honesta, desperdiças o tempo precioso, que é mais que dinheiro, que é valor inapreciável, pois com ele adquirimos os méritos e virtudes que asseguram os eternos destinos de nossas almas, é mais que um erro, é um crime, principalmente para quem tem a grave responsabilidade de uma casa. Evitai, pois, a ociosidade, e evitareis o jogo, a crápula e os demais vícios que ela engendra. Trabalhai sempre corajosos e dignos. Pobres, mas cheios de honra.
O chefe de família que joga e se embriaga, abre um abismo profundo, em que afoga na vergonha e nas lágrimas a felicidade da mulher, a felicidade dos filhos, e a sua própria felicidade.
Desgraçado! Antes não tivesse ele nascido! Antes houvesse do berço sido trasladado ao túmulo, como diz Jó, do que trair tão vergonhosamente sua missão sagrada, e arrojar ele próprio na lama dos opróbrios a brilhante coroa de sua realeza doméstica!
Vivei honrado e só para vossa família. Poucas familiaridades fora, intimidades nenhumas. Aprazei-vos no grêmio dela. Em outra parte tereis horas vertiginosas, febris, cheias de sobressalto; aqui vossa vida se escoará plácida, quase monótona, mas solidamente feliz. Não é a onda inútil que cai atormentada de rochedo em rochedo; é a veia fecunda e cristalina, que se desliza em meandros pelo prado.
“Para apreciar todo o encanto da existência”, diz um elegante escritor, “não nos é necessário, como aos mundanos, uma sucessão perpétua de sensações mais ou menos fortes. Nós parecemo-nos com aqueles peregrinos da Arábia Feliz, que caminham devagar e ao acaso, sem ver outra coisa que o mesmo céu, os mesmos astros, a mesma terra; sem sentir outras necessidades senão as da véspera; sem desejar outros prazeres mais que rir, olhar, gozar da natureza e de si mesmos. Uma trovoada lhes faria medo…; um eclipse do sol lhes tornaria pouco seguro o andar; um fenômeno de luz ofuscar-los-ia e faria perder o trilho. Gostam do que têm; com um se enfeitam; existem a pouquíssimo custo, porque existem. Vão assim mansamente até o fim da viagem: neste caso estamos nós.
Que uniformidade em nossos dias! Que paz em nossos corações! O que carecemos? Ver-nos. O que nos encante? Nossas pequenas palestras, nossas risonhas simpatias, nossos projetos comuns; este enlace de nossas almas, de nossos votos, de nossos pensamentos; este viver contente, que o mundo não conhece mais, porque esquece de viver; esta satisfação de nós, que não é amor-próprio e soberba, mas sim reconhecimento pelos benefícios de Deus, que nos fez bons, meigos, simples de coração, indiferentes a tudo o que não é a verdadeira felicidade. Eis todavia, como vamos passando o tempo, como nossos dias vão uns após outros, sem deixar mais rastros que as ondas após as ondas, as flores após as flores.
E quando o Criador de todas as coisas nos disser: ‘Vinde a mim’, iremos a Ele sem temor, sem desconfiança… continuaremos a beber na pura fonte do amor, encheremos a eternidade com a ventura que já começamos a saborear no tempo”.
VI
Terminemos, repousando o olhar num delicioso quadro, traçado por mão de mestre. Representa o interior doméstico de um insigne literato de nossos dias, que se converteu ao Catolicismo.
“O interior doméstico do sr. Droz, oferecia o mais edificante e raro espetáculo. Uma mulher tal como as forma Deus para os eleitos, uma excelente filha, uns meninos e criancinhas cheios de vigor, cheios de caráter, formavam sua numerosa família: legião de anjos conduzidos por uma santa.
Tudo o que ali passava diferia muito do que se vê no ordinário das casas.
Fazer o bem, aliviar os pobres, distribuir as horas do dia em louvores a Deus, em serviços aos homens: eis o que sonham os bons espíritos, eis o que realizam os bons corações.
Ao entrar neste santuário da virtude, parecia respirar-se o ar do Céu. Saía-se daí purificado, aperfeiçoado. Também a gente dizia consigo: voltarei. E voltava contente, mui contente de achar, entre seres tão privilegiados do alto, o repouso, esta saúde de alma que se perde sempre no febril contato do mundo.
Depois de longos anos de uma dita que nada alterara, nem interrompera, quis Deus levar para Si a casta companheira do meu amigo. Pintar a mágoa do esposo, é o que eu não tentarei. Quanto ao Cristão, recebeu ele em cheio no coração este fundo golpe, não sem gemer, mas sem murmúrio. Afinal a morte, a própria morte não teve poder de o separar do ente querido que o cobrira de felicidade toda a sua vida. A câmara, em que recebera os últimos adeuses dela, ficou tal qual a deixou a boa peregrina chamada para a verdadeira pátria. O leito com suas cortinas abertas, seu acolchoado de seda, sua pia com o raminho, sua palma benta, os simples móveis, a poltrona usada onde costumava sentar-se, toda essa decoração do santuário conjugal servia de rememorar ao triste aquela que já não existia, mas cuja casta imagem via ele ainda vagar naquele estreito recinto, onde ia todos os dias chorar e orar.
Ó, dizia-me ele, quanto ainda lhe devo! Quando por contrariedades vindas do exterior aumenta minha natural tristeza; quando tenho que me queixar de outrem; quando injustiças pesam sobre meu coração; quando a modo que o espírito de misantropia se vai de mim apoderando, que faço? Entro aqui, prostro-me diante desta estreita cama, cruzo as mãos, e de cabeça inclinada, oro; depois, lembro-me das derradeiras palavras daquela boca tão pura, e as repito, e penetro-me das exortações, e encho-me dos maviosos sentimentos de piedade, de caridade e indulgência, que então tanto me comoveram.
E quando este orvalho divino desce ao fundo de minha alma, para fecundar alguns gérmens de bem e de belo, que Deus se dignou aí depor, saio de todo em todo renovado, entro na vida, estendo a mão aos transeuntes; depois, contente e aliviado, bendigo mil vezes a angélica criatura, que, até depois de morta, transpassando-me miraculosamente sua alma, me congraçou com o gênero humano”.
_________________________
1. D. Antônio de Macedo Costa, “O Livro da Família” – ou Explicação dos Deveres Domésticos Segundo as Normas da Razão e do Cristianismo, Oferecido aos seus Diocesanos, Cap. III, pp. 43-56. 1930.
2. Ef. V, 23.
3. Ef. V, 27.
4. Vid. Tirini, comm. in hunc locum.
5. Vid. P. Cattaneo, Opere, Tom. I.
6. Hortus pastorum, p. 542.
7. Col. III, 19.
Nenhum comentário:
Postar um comentário