DIA 14 DE SETEMBRO
Instituiu-se a festa da Santa Cruz, para celebrar a memória daquele dia, em que o Sagrado Madeiro, sobre o qual o Salvador do mundo, Jesus Cristo, consumou a grande obra da Redenção, foi solenemente trazido pelo imperador Heráclio a Jerusalém, donde catorze anos antes o tinha levado Cosroas, rei da Pérsia. Atenta sempre a Igreja e sempre solícita em dar a este precioso instrumento, todo o culto que por tantos títulos se lhe deve, instituiu esta festa em reverência da Santa Cruz, celebrando todos os anos as maravilhas que obrou neste dia, que com razão se pode chamar, o dia do seu triunfo.
Cosroas II, filho de Hormisdas, rei da Pérsia, subiu ao torno no ano de 591, e foi tão desumano, que mandou tirar a vida ao seu próprio pai. Este detestável parricídio tornou-o tão aborrecido de seus vassalos, que se viu obrigado a procurar a sua salvação na fuga.
Refugiou-se, pois, em Constantinopla sob a proteção do imperador Maurício, que o acolheu com excessiva bondade e o restituiu ao trono. Mas Focas, que de simples centurião tinha subido aos primeiros cargos do império, fez-se proclamar imperador, no ano de 601; perseguindo Maurício até próximo de Calcedônia, primeiro mandou tirar a vida a quatro filhos seus diante do infeliz pai, e depois mandou cortar a cabeça ao mesmo Maurício.
Resolvido Cosroas a vingar a morte de seu insigne benfeitor, declarou guerra a Focas, entrou na Síria, apoderou-se da Palestina, da Armênia e da Capadócia, devastando o Oriente, até as portas de Constantinopla. Heráclio, filho do governador da África, animado com o clamor dos povos, que já não podiam suportar as violências do tirano, foi com uma esquadra ao porto de Constantinopla, e derrotadas as tropas de Focas, o fez prisioneiro e lhe mandou cortar a cabeça. Foi Heráclio proclamado imperador no ano de 610, e não se poupou à diligência alguma, para pactuar com o rei da Pérsia; mas este, orgulhoso com as suas primeiras vitórias, desprezou todas as propostas do imperador, e voltou a começar as suas irrupções nas terras do imperador. Entrou na Palestina, pôs cerco a Jerusalém no ano de 615, tomou-a e levou para a Pérsia o tesouro mais precioso que tinham os cristãos no Oriente, isto é, a Santa Cruz, onde Jesus Cristo morrera para a salvação de todos os homens; e apoderando-se também de todos os vasos sagrados, levou igualmente para a Pérsia grande número de cristãos escravos, entre os quais o Patriarca de Jerusalém, Zacarias, que nunca perdeu de vista o Sagrado Madeiro. Levaram-na como em triunfo os infiéis para a cidade de Cresifonte, sobre o Tigre, intentando erigir com Ela um troféu à sua idolatria; mas a Cruz, ainda que ao parecer, cativa entre os inimigos, fez-se respeitar deles, da mesma maneira que em outros tempos a Arca do Senhor entre os filisteus.
Nenhum persa teve a ousadia de tocar o Sagrado Penhor da nossa Redenção, conservando-se sempre dentro da caixa ou estojo de prata, em que a metera Santa Helena, sem que toda a cobiça de Cosroas se atrevesse a aproveitar-se mesmo dela, pelo respeito que tinha àquela preciosa Relíquia.
Segunda vez lhe pediu Heráclio a paz, sujeitando-se a indignas condições; mas o soberbo persa, orgulhoso com suas vitórias, respondeu aos embaixadores de Heráclio, que lhe concederia a paz com a condição de que o imperador e todos os seus vassalos cristãos renunciassem a Jesus Cristo e adorassem o sol, único Deus dos persas. Horrorizaram-se os cristãos ao ouvirem semelhante proposição, e animado de justiça e indignação o imperador, declarou em presença de seus oficiais, que estava pronto a derramar até a última gota do seu sangue para humilhar tão insigne insolência.
O Clero Secular, os Mosteiros e todos os cristãos ofereceram ao imperador os seus bens para uma empresa tão justa, considerando-a já como negócio de religião. Heráclio pôs-se à frente de suas tropas e marchou direto à Pérsia. Estando já em presença do exército inimigo tomou na mão uma imagem milagrosa do Filho de Deus, percorreu com ela as fileiras, lembrando aos seus soldados, que iam pelejar por Jesus Cristo e que assim deviam pôr a sua confiança no auxílio do Senhor, Deus dos Exércitos.
Não foram enganados em sua esperança: deu-se a batalha, e os persas, posto que superiores em número, e acostumados a vencer, foram inteiramente derrotados. A campanha foi ainda mais gloriosa para os cristãos; o imperador bateu os persas em muitos reencontros, obrigou Cosroas a abandonar a cidade de Gaza, onde estava o célebre templo do fogo. Tendo entrado Heráclio na cidade, achou no palácio a estátua de Cosroas sentado debaixo de uma espécie de meia laranja, que representava o Céu.
Ao redor da estátua viam-se o sol, a lua e as estrelas e também alguns Anjos, que estavam em pé com cetros de ouro na mão. Mandou o imperador lançar fogo a este palácio, ao templo e a toda a cidade; donde prosseguindo em suas conquistas, entrou na Albânia; aqui, movido de compaixão, deu a liberdade a 50 mil prisioneiros, que levava consigo e em pouco tempo se apoderou de muitas províncias.
Enquanto Heráclio adiantava as suas conquistas por país inimigo, estava Constantinopla cercada pelos Avaros, que tinham rompido a paz e pelos persas que se mantinham na Calcedônia, mas recorrendo os sitiados naquele transe à Santíssima Virgem, foram ouvidas a suas orações. O exército dos bárbaros pereceu, lavrando nele um grande contágio; fatigados por outra parte pelas contínuas sortidas dos sitiados, levantaram o cerco. Vendo o imperador que o Céu se declarava visivelmente em seu favor, marchou no desígnio de encontrar Cosroas, ainda que fosse no centro da Pérsia.
Não tardou a encontrá-lo; a princípio, como que se acovardaram os cristãos, à vista do exército inimigo muito superior em forças; mas Heráclio animou-os levando sempre na mão a imagem de Jesus Cristo: “Eis, filhos, lhes dizia em breves palavras, por Deus combatemos; cada um de vós, vencerá a mil”. Com efeito, os dois exércitos vieram às mãos, Cosroas foi inteiramente desbaratado, todos os seus oficiais prisioneiros, e ele próprio obrigado a salvar-se pela fuga.
Depois de odioso, tornava-se agora, desprezível a seus vassalos; estes abandonaram-no. Seu filho primogênito Siroes, a quem ele tentara deserdar em proveito de seu filho segundo, foi proclamado rei, o qual mandou tirar a vida barbaramente a seu pai dentro da prisão, dispondo que o fizessem morrer às flechadas, durante cinco dias, para que fosse mais cruel e prolongada a sua morte. Pediu depois a paz a Heráclio, deixando a seu arbítrio as condições; a principal, foi a restituição da Cruz do Salvador, que havia 14 anos que estava em poder dos persas dentro de Cresifonte, e que poria em liberdade o Patriarca Zacarias com todos os outros cristãos cativos. Aceitou Siroes todas estas condições; o Sagrado Tesouro foi primeiramente levado a Constantinopla em triunfo, saindo a recebê-lo todo o povo com ramos de oliveira e velas acesas, entoando hinos e cânticos. Saiu do poder dos persas a Cruz do Salvador no ano de 627.
No seguinte, embarcou o imperador Heráclio para a transportar a Jerusalém e dar graças a Deus por suas vitórias. Facilmente se pode imaginar o regozijo e a concorrência dos fiéis, quando viram voltar a Jerusalém aquele Sagrado Madeiro, Trono adorável das misericórdias do Salvador do mundo. Concorreram à Cidade Santa, de toda a parte. Quis o mesmo imperador levar até ao Calvário aquele Sagrado peso, vestido das mais ricas e vistosas galas imperiais. Precedido do Clero, acompanhado do Patriarca, rodeado dos grandes do império, e entre as alas de uma imensa multidão de povo carregou sobre os seus ombros a Sagrada Cruz; mas ao chegar à porta que olha para o Calvário, ficou estranhamente atônito ao sentir-se imobilizado; e vendo que não podia dar um passo, assombraram-se todos diante daquele prodígio, mas o Patriarca descobriu logo a causa.
“Considerai, Senhor, lhe disse respeitosamente, que talvez essa púrpura imperial e essas vistosas galas que vos adornam, sejam menos conformes ao pobre e abatido traje, com que Jesus Cristo levou essa mesma Cruz, e saiu por esta mesma porta para subir ao Monte Calvário”. Penetrou logo o imperador o alcance destas palavras, e movido por elas, se despojou das vestes imperiais, descalçou os pés, e coberto de humilde túnica, com a cabeça descoberta e despojado de toda a insígnia imperial, caminhou sem dificuldade até ao Calvário, colocou em seu lugar o Sagrado Madeiro, e rogou ao Patriarca que, tirando-O do estojo, O mostrassem a todo o povo. O Patriarca reconheceu que os selos estavam intactos e inteiros; abriu o estojo de prata com a chave, que se achava no Tesouro, e tendo-A adorado, deu com Ela a bênção aos fiéis; depois tornou a fechá-La e a colocou no mesmo lugar, onde catorze anos antes estivera.
Quis Deus exaltar a glória deste precioso instrumento da nossa Redenção com pompa tão augusta, acompanhando-a de muitos milagres no dia 14 de Setembro de 629. Ofereceu ainda à igreja de Jerusalém, o imperador, dons preciosíssimos: reparou os Santos Lugares; restituiu às suas dignidades o Patriarca e outros Ministros da Igreja, deixando por toda a parte ilustres monumentos da sua insigne piedade.
Ordenou-se que todos os anos se celebrasse uma solene festa em memória desta gloriosa restituição, a qual foi muito célebre, com especialidade no Oriente, e neste dia concorriam peregrinos a Jerusalém de toda a parte do mundo. Mas deve advertir-se que muito tempo antes deste sucesso, quer na igreja grega, quer na latina, já se celebrava uma festa com o nome de “Exaltação da Santa Cruz” no mesmo dia 14 de Setembro, que era para comemorar aquelas palavras de Cristo, falando de Sua morte: Quando eu for exaltado da terra, atrairei a mim todas as coisas: Logo que tiverdes levantado o Filho do homem, conhecereis quem eu sou.1 O Cardeal Barônio diz que foi exaltada a Cruz no tempo de Constantino Magno, quando se deu liberdade aos cristãos de pregar o Evangelho e de edificarem igrejas públicas. Também se chamou Exaltação da Santa Cruz aquela solenidade, que com tanta magnificência e tanto aparato se celebrou em Jerusalém, quando Santa Helena encontrou o verdadeiro Lenho da nossa Redenção, e O mandou colocar na magnífica igreja que à sua custa se edificou no Calvário, celebrando desde então a igreja grega e latina uma solene festa no dia 14 de Setembro com o título de Exaltação da Santa Cruz. Faz menção dela o Sacramentário de São Gregório; e Canísio cita as palavras com que a anuncia o Menológio dos gregos: Exaltatio pretiosae et vivificae crucis sub imperatore Constantino Magno: a exaltação da preciosa e vivífica Cruz em tempo de Constantino Magno. O autor da vida de Santo Eutiques, Patriarca de Constantinopla, que foi seu contemporâneo, refere que muito tempo antes do imperador Heráclio, voltando o Santo Patriarca do seu desterro por ordem dos imperadores Justino e Tibério, passou por um Mosteiro, onde no dia 14 de Setembro se celebrou com grande solenidade a festa da Exaltação da Santa Cruz. Leôncio, Bispo de Nápoles na ilha de Chipre, escrevendo a vida de São Simeão, por sobrenome Salus, fala da festa da Exaltação da Santa Cruz, a qual era celebrada com grande solenidade e muito concurso dos fiéis, como estabelecida de há muito antes de Heráclio.
Assim pois, parece muito provável, que o imperador Heráclio escolheu o dia 14 de Setembro, para restituir a Cruz ao mesmo lugar, donde catorze anos antes a haviam tirado os persas, como dia já consagrado há muito para a Exaltação da Santa Cruz; e que pela devoção e grande confiança que sempre teve nela o grande Constantino, se determinaram os mesmos Pontífices a instituir esta Festa.
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Fonte: Pe. Croiset, S.J., “Ano Cristão”, Vol. IX, pp. 173-177, 14 de Setembro, Festa da Exaltação da Santa Cruz; Tradução do Francês pelo Pe. Matos Soares, Porto, 1923.
1. Jo. 12, 32.
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