LIVRAI-NOS DO MAL
(Alocução
de 15/11/1972)
Atualmente,
quais são as maiores necessidades da Igreja?
Não
deveis, considerar a nossa resposta simplista, ou até supersticiosa
e irreal: uma
das maiores necessidades é a defesa daquele mal, a que chamamos
Demônio.
Antes
de esclarecermos o nosso pensamento, convidamos o vosso a abrir-se à
luz da fé sobre a visão da vida humana, visão que, deste
observatório, se alarga imensamente e penetra em singulares
profundidades. E, para dizer a verdade, o quadro que somos convidados
a contemplar com realismo global é muito lindo. É o quadro da
criação, a obra de Deus, que o próprio Deus, como espelho exterior
da sua Sabedoria e do Seu poder, admirou na sua beleza substancial.
Além
disso, é muito interessante o quadro da história dramática da
humanidade, da qual emerge a da Redenção, a de Cristo, da nossa
salvação, com os seus magníficos tesouros de revelação, de
profecia, de santidade, de vida elevada a nível sobrenatural, de
promessas eternas.
Se
soubermos contemplar este quadro, não poderemos deixar de ficar
encantados; tudo tem um sentido, tudo tem um fim, tudo tem uma ordem
e tudo deixa entrever uma Presença-Transcendência, um Pensamento,
uma Vida e, finalmente, um Amor, de tal modo que o universo, por
aquilo que é e por aquilo que não é, se apresenta como uma
preparação entusiasmante e inebriante para alguma coisa ainda mais
bela e mais perfeita.
A visão cristã do cosmo e da vida é, portanto, triunfalmente
otimista; e esta visão justifica a nossa alegria e o nosso
reconhecimento pela vida, motivo porque, celebrando a glória de
Deus, cantamos a nossa felicidade.
O
Ensinamento Bíblico
Esta
visão, porém, é completa, é exata? Não
nos importamos,
porventura, com
as deficiências que se encontram no mundo, com o comportamento
anormal das coisas em relação à nossa existência, com a dor, com
a morte, com a maldade, com a crueldade, com o pecado, numa palavra,
como o mal?
E não vemos quanto mal existe no mundo, especialmente
quanto mal moral, ou seja, contra o homem e, simultaneamente, embora
de modo diverso, contra Deus?
Não constitui isto um triste espetáculo, um
mistério inexplicável?
E não somos nós, exatamente nós, cultores do Verbo, os cantores do
Bem, nós, crentes, os mais sensíveis, os mais perturbados perante a
observação e a prática do mal? Encontramo-lo no reino da natureza,
onde muitas das suas manifestações, segundo nos parece, denunciam
uma desordem.
Depois, encontramo-lo no âmbito humano onde se manifestam a
fraqueza, a fragilidade, a dor, a morte, e ainda coisas piores;
observa-se uma dupla lei contrastante, que, por
um lado, quereria o bem e, por outro, se inclina para o mal,
tormento este que São Paulo põe em humilhante evidência para
demonstrar a necessidade e a felicidade de uma graça salvadora, ou
seja, da salvação trazida por Cristo;
já o poeta pagão Ovídio, tinha denunciado este conflito interior
no próprio coração do homem: “video
meliora proboque, deteriora sequor”.
Encontramos o pecado, perversão
da liberdade humana e causa profunda da morte, porque é um
afastamento de Deus,
fonte da vida
e,
também, a
ocasião e
o efeito de uma intervenção, em nós e no nosso mundo, de um agente
obscuro e inimigo, o Demônio.
O
mal já não é apenas uma deficiência, mas uma eficiência, um ser
vivo, espiritual, pervertido e perversor. Trata-se de uma realidade
terrível, misteriosa e medonha.
Sai
do âmbito dos ensinamentos bíblicos e eclesiásticos quem se recusa
a reconhecer a existência desta realidade; ou melhor, quem faz dela
um princípio em si mesmo, como se não tivesse, como todas as
criaturas, origem em Deus, ou a explica como uma pseudo-realidade,
como uma personificação conceitual e fantástica das causas
desconhecidas das nossas desgraças.
O
problema do mal,
visto na sua complexidade e na sua absurdidade em relação à nossa
racionalidade, torna-se obsessionante. Constitui
a maior dificuldade para a nossa compreensão religiosa do cosmo.
Foi por isso, que Santo Agostinho penou durante vários anos:
“Quaerebam
unde malum, et non erat exitus”,
procurava de onde vinha o mal e não encontrava explicação.
Vejamos,
então, a importância que adquire a advertência do mal, para a
nossa justa concepção cristã do mundo, da vida, da salvação. É
o próprio Cristo quem nos faz sentir esta importância. Primeiro,
no desenvolvimento da história haverá quem não recorde a página,
tão densa de significado, da tríplice tentação? E, ainda, em
muitos episódios evangélicos, nos quais o Demônio se encontra com
o Senhor e aparece nos seus ensinamentos?E
como não haveríamos de recordar que Jesus Cristo, referindo-se três
vezes ao Demônio, como seu adversário, o qualifica como “Príncipe
deste mundo”?
E a ameaça desta nociva presença é indicada em muitas passagens do
Novo Testamento. São Paulo chama-lhe “deus
deste mundo”
e previne-nos contra as lutas ocultas, que nós cristãos, devemos
travar não só com o Demônio, mas com a sua tremenda pluralidade:
“Revesti-vos
da armadura de Deus para que possais resistir às ciladas do Demônio.
Porque nós não temos de lutar
(só)
contra
a carne e o sangue, mas contra os Principados e Potestades, contra os
Dominadores deste mundo tenebroso, contra os Espíritos malignos
espalhados pelos ares”.
Diversas
passagens do Evangelho dizem-nos que não se trata de um só Demônio,
mas
de muitos,
um dos quais é o principal: Satanás,
que
significa
o Adversário, o Inimigo; e, ao lado dele, estão muitos outros,
todos, criaturas de Deus, mas decaídas, porque rebeldes e
condenadas; constituem um mundo misterioso, transformado por um drama
muito infeliz, do qual conhecemos pouco.
O
Inimigo Oculto
Conhecemos,
todavia, muitas coisas deste mundo diabólico, que dizem respeito à
nossa vida e a toda a história humana. O
Demônio é a origem da primeira desgraça da humanidade; foi o
Tentador pérfido e fatal do primeiro pecado, o Pecado Original.
Com aquela falta de Adão, o
Demônio adquiriu um certo poder sobre o homem, do qual só a
Redenção de Cristo nos pode libertar.
Trata-se
de uma história que ainda hoje existe: recordemos os exorcismos do
Batismo e as frequentes referências da Sagrada Escrituras e da
Liturgia ao agressivo e opressivo “domínio
das trevas”.
Ele é o Inimigo número um, o Tentador por excelência.
Sabemos,
portanto, que
este ser mesquinho e perturbador existe realmente e, que ainda atua
com astúcia traiçoeira; é o Inimigo oculto que semeia erros e
desgraças na história humana.
Deve-se
recordar a significativa parábola evangélica do trigo e da cizânia,
síntese e explicação do ilogismo que parece presidir às nossas
contrastantes vicissitudes: “Inimicus homo hoc fecit”.
É o “assassino desde o princípio… e pai da
mentira”, como o define Cristo;
é o insidiador sofista do equilíbrio moral do homem. Ele é o
pérfido e astuto encantador, que sabe insinuar-se em nós através
dos sentidos, da fantasia, da concupiscência, da lógica utópica ou
de desordenados contatos sociais na realização de nossa obra, para
introduzir neles desvios, tão nocivos quanto, na aparência,
conformes às nossas estruturas físicas ou psíquicas, ou às nossas
profundas aspirações instintivas.
Este
capítulo, relativo ao Demônio e ao influxo que ele pode exercer
sobre cada pessoa, assim como sobre comunidades, sobre inteiras
sociedades ou sobre acontecimentos, é um capítulo muito importante
da doutrina católica, que deve ser estudado novamente, dado que hoje
o é pouco. Algumas pessoas julgam encontrar nos estudos da
psicanálise ou da psiquiatria, ou em práticas evangélicas, no
princípio da sua vida pública: de espiritismo, hoje tão
difundidas em alguns países, uma compensação suficiente. Receia-se
cair em velhas teorias maniqueístas, ou em divagações fantásticas
e supersticiosas. Hoje, algumas pessoas preferem mostrar-se
fortes, livres de preconceitos, assumir ares de positivistas, mas,
depois, dão crédito a muitas superstições de magia ou populares,
ou, pior, abrem a própria alma – a própria alma batizada,
visitada tantas vezes pela presença eucarística e habitada pelo
Espírito Santo – às experiências licenciosas dos sentidos, às
experiências deletérias dos estupefacientes, assim como às
seduções ideológicas dos erros na moda, fendas estas por onde o
Maligno pode facilmente penetrar e alterar a mentalidade humana.
Não
quer dizer que todo o pecado seja devido diretamente à ação
diabólica; mas também à verdade que aquele que não vigia, com
um certo rigor moral, a si mesmo,
se expõe ao influxo do “mysterium iniquitatis”,
ao qual São Paulo se refere
e que torna problemática a alternativa da nossa salvação.
A
nossa doutrina torna-se incerta, obscurecida como está pelas
próprias trevas que circundam o Demônio. Mas a nossa curiosidade,
excitada pela certeza da sua existência múltipla, torna-se legítima
com duas perguntas: – Há sinais da presença da ação
diabólica e quais são eles? – Quais são os meios de defesa
contra um perigo tão traiçoeiro?
A
Ação do Demônio
A
resposta à primeira pergunta requer muito cuidado, embora os sinais
do Maligno às vezes pareça tornar-se evidentes. Podemos admitir
a sua atuação sinistra onde a negação de Deus se torna radical,
sutil ou absurda; onde o engano revela hipócrita, contra a evidência
da verdade: onde o amor é anulado por um egoísmo frio e cruel; onde
o nome de Cristo é empregado com ódio consciente e rebelde;
onde o espírito do Evangelho é falsificado e desmentido; onde o
desespero se manifesta como a última palavra, etc. Mas é um
diagnóstico demasiado amplo e difícil, que agora não ousamos
aprofundar nem autenticar; que não é desprovido de dramático
interesse para todos, e ao qual até a literatura moderna dedicou
páginas famosas. O problema do mal continua a ser um dos maiores
e permanentes problemas para o espírito humano, até depois da
resposta vitoriosa que Jesus Cristo dá a respeito dele.
“Sabemos
– escreve o evangelista São
João – que todo aquele que foi gerado por Deus, Deus
guarda-o, e o Maligno não o toca”.
A
Defesa do Cristão
A
outra pergunta, que defesa, que remédio, há para combater a ação
do Demônio, a resposta é mais fácil de ser formulada, embora seja
difícil pô-la em prática. Poderemos
dizer que tudo aquilo que nos defende do pecado nos protege, por isso
mesmo, contra o Inimigo invisível. A graça é a defesa decisiva. A
inocência assume um aspecto de fortaleza. E, depois, todos devem
recordar o que a pedagogia apostólica simbolizou na armadura de um
soldado, ou seja, as virtudes que podem tornar o cristão
invulnerável.
O cristão deve ser militante; deve ser vigilante e forte;
e, algumas vezes, deve recorrer a algum exercício ascético
especial, para afastar determinadas invasões diabólicas; Jesus
ensina-o, indicando o remédio “na oração, e no
jejum”.
E o Apóstolo indica a linha mestra que se deve seguir: “Não
te deixes vencer pelo mal; vence antes o mal com o bem”.
Conscientes,
portanto, das presentes
adversidades em que hoje se encontram as almas, a Igreja e o mundo,
procuraremos dar sentido e eficácia à usual invocação da nossa
oração principal: “Pai nosso… livrai-nos do mal!”.
Contribua
para isso também a nossa Bênção Apostólica.
____________________________
Nenhum comentário:
Postar um comentário