PRIMEIRA PALAVRA1
“Pater, dimitte illis;
non enim sciunt quid faciunt”.
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“Pai, perdoai-lhes,
porque não sabem o que fazem.”
Faz dezenove séculos que, no cimo de um montículo da Judeia, expirava um condenado à morte, e morte de Cruz… Faz dezenove séculos que, no alto do Calvário, nas vizinhanças da cidade santa de Jerusalém, entre tormentos indizíveis, entregava sua Alma a Deus, Jesus de Nazaré, o Messias prometido ao povo de Israel.
Suspenso no infamante madeiro da Cruz, supliciado entre dois reconhecidos malfeitores, que a justiça mandara à morte, expirou Jesus Cristo, o Filho Unigênito de Deus.
No decurso dos séculos posteriores a esses acontecimentos lutuosos e terríveis, a humanidade tem experimentado toda espécie de transformações e o mundo tem sofrido toda sorte de abalos. Impérios sucederam a impérios; nações tomaram lugar de outras nações; ergueram-se poderosos condutores de povos, que jogaram, nos campos de batalha, a sorte de milhões e milhões de homens.
A própria face de nosso planeta não escapou às transformações oriundas, parte da ação do tempo, parte da obra do próprio homem.
O quadro político do universo não oferece menores alterações. Várias vezes as raças se confundiram e, no rolar incessante dos séculos, pereceram algumas nacionalidades, perdeu-se a memória de alguns povos.
Dos super-homens, que a humanidade tem produzido, muito poucos conseguiram escapar à ação destruidora do tempo, supremo nivelador das grandezas terrenas.
Em meio desse quadro, de renovação constante da nossa espécie, a figura de Jesus Cristo aparece revestida de uma auréola imarcescível, que os tempos apenas tornam mais fulgurante e mais bela.
Quando se perde a memória dos grandes homens de todos os povos e apenas raros conseguem transmitir o próprio nome às gerações modernas, Jesus Cristo, após dezenove séculos de sua morte de Cruz, se mostra em pleno fastígio de seu poder e recebe as adorações mais fervorosas e mais sinceras de todos os povos.
Não será preciso procurar maiores provas e mais poderosos argumentos em favor da Divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo.
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A piedade, que consagramos aos nossos semelhantes, nos faz guardar profundamente em nossa alma, as últimas palavras proferidas pelos entes queridos, que se partem desta vida terrena… Isso é tão natural e tão espontâneo que, às vezes, até parece que o homem sente um pouco de alívio e de conforto, em transmitindo a outrem as palavras e narrando as circunstâncias da morte de alguém que era objeto de seu mais terno afeto. É a necessidade que sentimos de confiar aos nosso íntimo, desabafando o que nos vai na alma.
A essa lei geral da nossa vida e da nossa natureza não podia escapar o drama sanguinolento do Gólgota, em que Jesus Cristo deu a vida a troco do resgate espiritual da humanidade.
O Evangelho, para nossa felicidade, guardou as principais circunstâncias dessa morte e registrou as derradeiras palavras do Divino Mestre.
A cultura cristã, no decurso dos tempos, tem estudado e meditado, profundamente, o sentido e os ensinamentos do quanto Jesus proferiu do alto da Cruz.
As palavras de Nosso Senhor são espírito e vida e encerram preciosas lições morais e doutrinárias.2
São verdades, que iluminam nossa inteligência; são normas de conduta, que nos orientam na vida prática.
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Conta-se que Manlio, quando era levado ao patíbulo, ao passar próximo do Capitólio, exclamou para os romanos:
“Eis aqui o lugar de onde expulsei o exército gaulês, expondo-me ao perigo de perder a vida para defender a minha pátria: eu, sozinho, defendi a todos, e agora não há um só que tome a minha defesa!”
E essas palavras despertaram a gratidão dos romanos e Manlio foi restituído à liberdade.
Assim falou um pagão.
Mui diferente foi a linguagem de Cristo. Foi a palavra de um Deus.
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Insultado pela multidão; seviciado pelos soldados e executores da sentença; traído pelos seus amigos e companheiros; renegado pelos seus compatriotas, Jesus calava-se e envolvia em um olhar de compaixão aqueles mesmos que o vilipendiavam na derradeira hora…
Temendo talvez que os Céus não pudessem mais suportar a impunidade de um deicídio, o Redentor apressa-se a implorar o perdão de seus algozes e dos seus inimigos.
“Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem”.
Foram essas as primeiras palavras, que Jesus proferiu na Cruz, suplicando misericórdia para aqueles que O tratavam com tamanha crueldade.
Dirigiu-se ao Pai, ao seu Eterno Pai, cuja vontade viera cumprir, à risca, aqui na terra.
Pediu perdão para os juízes, que O condenaram injustamente; para os esbirros, que O imolavam; para os blasfemos, que escarneciam de seus tormentos… E o pensamento de Jesus ia muito mais longe…
“É que nem todos os deicidas estavam no Calvário… a Paixão de Jesus Cristo não terminou com o seu último suspiro.
Vemo-la perpetuar-se a nossos olhos, com as suas diferentes cenas de hipócritas traições, odiosas mentiras, revoltantes perfídias, ódios infernais, crueldades selvagens!…”.3
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Em breves palavras Jesus encerrou três atos e três lições:
a) Perdoa aos seus inimigos;
b) Pede perdão para eles;
c) Desculpa e escusa, de algum modo, o procedimento dos seus algozes.
Na derradeira hora de sua existência mortal, Jesus não podia deixar de ser coerente consigo mesmo e de praticar aquilo que Ele próprio havia ensinado e imposto aos seus discípulos.
Entre as novidades contidas nos ensinos do Divino Mestre existia uma que era motivo de escândalo para os espíritos fracos daquela época: o perdão dos inimigos.
Efetivamente, nada há mais contrário à natureza humana, nada há mais oposto aos nossos sentimentos do que suportar, sem protesto, uma injustiça manifesta, perdoar uma ofensa gratuita.
Por causa das injustiças, que se praticam em público e em particular, entre indivíduos e entre sociedades, no recesso das famílias ou nas sentenças dos tribunais, é que se executam horríveis vinganças, se ateiam guerras exterminadoras e povos inteiros são entregues à ruína e à desolação.
“Dente por dente; olho por olho”.4
Foi essa a lei universal e a prática usual da humanidade. Jesus Cristo foi quem primeiro se insurgiu contra esses princípios e impôs aos seus discípulos outro procedimento e outra lei. Ensinava Ele coisas muito diferentes: “Amai-vos uns aos outros”; “Fazei bem aos que vos fazem mal”; “Quando vos ferirem numa face, oferecei a outra”; “Amai…”, “Fazei o bem”, “orai pelos vossos perseguidores…”, “para que sejais verdadeiros filhos do vosso Pai Celeste”.5
Quem tais ensinamentos havia dado, era natural, em tempo oportuno, soubesse perdoar aos seus inimigos e algozes.
Mas Jesus foi muito além… depois de haver perdoado, pediu ao Pai que perdoasse também e, não satisfeito, ergueu a voz e tomou a palavra para defender e escusar a ingratidão humana.
Observa Santo Agostinho, que jamais houve um advogado tão engenhoso para livrar um réu da morte temporal, como Jesus, na prece ao Pai, para arrancar os pecadores à morte eterna. Em duas palavras, fez sobressair, simultaneamente, a dignidade do Supliciado – o Filho de Deus –; a bondade d’Aquele a quem se dirigia a sua prece – Um Deus, que é Pai –; o muito do seu pedido – um pedido que lhe sai dos lábios, ao mesmo tempo que o sangue jorra de todas as suas veias –; a desculpa daqueles que Ele defende – a ignorância, a cegueira e a loucura.
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O mundo contemporâneo abisma-se em uma série interminável de competições tremendas, de ódios inextinguíveis, de rivalidades perenes…
Os indivíduos se espreitam mutuamente, desconfiados; as famílias nutrem divergências constantes; as classes sociais se entreolham como rivais; as nações buscam o aniquilamento umas das outras…
Para tanta desordem, para tantos males, que ameaçam os povos, só existe o remédio de Jesus: o perdão das ofensas e a fraternidade entre os homens, segundo os Preceitos Evangélicos. E só.
E para mais fácil reconciliação da grande família humana, para que a paz reine entre os povos, comecem os católicos a pôr em prática o primeiro artigo do testamento de Jesus e, na hora extrema, experimentarão os efeitos salvíficos da palavra do Redentor: “Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem!”.
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1. “Espírito e Vida” – As Sete Palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo Pe. J. Cabral, I Palavra, pp. 31-37, da Coleção Cristo Redentor. Empresa Editora A.B.C. Ltda, Rio de Janeiro, 1938.
2. Joan. VI, 64.
3. Weber – De Gethsemane ao Golgotha. Pág. 165.
4. Êxod. CXXI, 24.
5. Rom. XII, 10; Math. V, 44; Luc. VI, 29; Math. VI, 12; Math. V, 45.
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