Há coisas que são boas, coisas que são más e outras que são neutras; e entre estas últimas algumas, no parecer do povo, tomam o aspecto de boas ou más, sem o serem realmente; mas elas são tidas e consideradas como tais. Para que fique mais claro o que quero dizer, discutirei a questão servindo-me de exemplos.
A pobreza, aos olhos da maioria dos homens, é considerada como um mal; mas ela não é um mal, muito pelo contrário: se o pobre praticar a vigilância e a sensatez, sua pobreza pode inclusive destruir o mal. Inversamente, costuma-se ter a riqueza como um bem; mas ela não o é de maneira absoluta, se não for usada de forma devida. Se a riqueza fosse um bem de maneira absoluta, os que a possuem deveriam ser homens de bem; se nem todos os ricos são virtuosos, mas apenas os que fazem bom uso da riqueza, é evidente que a riqueza não é um bem de maneira absoluta, nem por si mesma, mas é posta à disposição dos homens como um instrumento de virtude…
Se a pobreza, por sua vez, fosse um mal, todos os pobres seriam maus; visto que muitos entre eles conquistaram o Céu, a pobreza não é um mal.
– Mas, objetarão, muitos blasfemam por causa de sua pobreza.
– Não é por causa de sua pobreza que eles blasfemam, é por causa de sua própria loucura e de sua pusilanimidade. A prova disso, nos é dada pelo Bem-aventurado Jó. Ele se achava na extrema pobreza, no fundo do abismo da miséria; e todavia não blasfemava, mas continuava a louvar a Deus, dizendo: “O Senhor me deu, o Senhor tirou; bendito seja o Nome do Senhor”.1
– Mas por causa da riqueza muitos se tornaram rapaces e gananciosos.
– Não foi por causa da riqueza, mas por causa de sua própria loucura. O mesmo Jó dá testemunho disso. Sendo muito rico, não só não se apoderava do que não lhe pertencia, como dava do que era seu, e oferecia aos estrangeiros, por assim dizer, um porto de refúgio: “O estrangeiro não pernoitava à intempérie, abria minha porta ao viandante”.2 Também Abraão, que era tão rico, gastava toda a sua fortuna com os transeuntes. Nem um nem outro se tornaram gananciosos por causa da riqueza, assim como Jó e Lázaro não se tornaram blasfemadores por causa da pobreza; ambos, ainda que não tivessem sequer o alimento necessário, brilharam com tamanho esplendor, que Deus, que conhecia os pensamentos secretos, homenageou o primeiro, e o outro foi arrebatado deste mundo com um cortejo de Anjos, compartilhou da morada do Patriarca, e usufruiu os mesmos bens.
A doença se presta às mesmas observações. Se ela fosse um mal, aquele que a sofre seria necessariamente mau. Nestas condições, Timóteo, então, deveria ser mau, considerando-se que sofria de uma doença das mais graves. “Toma, lhe dizia Paulo, um pouco de vinho por causa do teu estômago e das tuas frequentes indisposições”.3 Mas nem por isso Timóteo foi mau; pelo contrário, a coragem com a qual suportou a enfermidade lhe valeu uma recompensa muito maior. É, pois, evidente que a doença não é um mal.
Houve também um profeta cujos olhos foram atingidos por um mal irremediável; mas isto não o tornou mau; ele profetizava, previa o futuro, e sua enfermidade não o impedia absolutamente de ser virtuoso. Em compensação, a saúde não é um bem absoluto; ela não é um bem, se não se faz dela um uso conveniente, se a pessoa se serve dela para um trabalho perverso ou para entregar-se a uma ociosidade estúpida; pois também a ociosidade não está isenta de culpa. Por isso São Paulo disse: “Se alguém não quer trabalhar, abstenha-se de comer”.4
Temos aí o exemplo de coisas neutras, que são boas ou más segundo o uso que delas se faz. Mas de que serve falar de saúde e doença, de riqueza e pobreza? Aquilo mesmo que, aos olhos da massa, constitui o bem capital, a vida, e aquilo que constitui o cúmulo dos males, a morte, não são nem um bem nem um mal absolutos. Trata-se ainda aí de coisas neutras, boas ou más segundo as disposições dos homens. Como se explica que assim seja? A vida é um bem quando se faz dela um uso conveniente; se se faz uso dela para desviar-se do caminho e prevaricar, ela não poderia ser um bem; e, neste caso, a morte seria preferível. A morte, por outro lado, que, aos olhos do povo, constitui aquilo de que mais se deve fugir, pode ser a fonte de uma infinidade de bens, quando tem uma causa digna. – A prova disso nos é dada pelos Mártires, que a morte fez com que se tornassem os mais felizes dos homens.
__________________________
Fonte: São João Crisóstomo, Sobre esta palavra de Isaías: “Eu, o Senhor Deus, criei a luz e as trevas; Eu dou a paz. Eu envio os males” (3-6). Cfr. O Esplendor Cristão, Volume I, São João Crisóstomo, 1ª Parte, Cap. IV, pp. 38-40. Ação Carismática Cristã – Fundação São João Crisóstomo, Rio de Janeiro/RJ, 1978.
1. Jó 1, 21.
2. Jó 31, 32.
3. I Tim. 5, 23.
4. Tes. 3, 10.
Nenhum comentário:
Postar um comentário