21 fevereiro, 2013
Recentemente, pequenos trechos de
uma carta escrita por Santo Afonso Maria de Ligório com considerações
acerca dos males que afligiam a Igreja e que diante da iminência do
conclave de 1774/1775 deveriam ser levados em conta na escolha do novo
Pontífice, vêm sendo reproduzidos em vários sites. Ante o momento vivido
pela Igreja, publicamos a tradução da carta na íntegra:
Escreve o Padre Tannoia, o primeiro
biógrafo e contemporâneo de Santo Afonso: “O Cardeal Castelli,
conhecedor do grande crédito de que Afonso gozava junto a todos pelo
espírito de Deus que o animava e o peso que a sua autoridade tinha junto
aos Cardeais, – sendo iminente o tempo em que eles deviam encerrar-se
no Conclave – quis que ele, como se respondesse a uma pessoa zelosa e
amiga que lhe tivesse pedido, indicasse em uma carta os principais
abusos que deviam ser extirpados da Igreja e da hierarquia eclesiástica,
e outras coisas que se deviam levar em consideração na eleição do novo
Papa. Assim pediu o Cardeal, querendo fazer presente a carta no
Conclave, para que se elegesse um papa adequado às circunstâncias.
Afonso, diante desta ordem, enrubesceu. Todavia, tanto pelo zelo pela
glória divina, como para obedecer a um eminentíssimo cardeal que ele
tanto estimava, recomendou-se antes a Deus, e assim lhe respondeu no dia
23 de outubro de 1774″ (Tannoia, Da vida e instituto do Ven. Servo de
Deus Afonso Maria de Ligório, Napoles 1798-1802, lib. III, cap. 55)
Carta 773. A Padre Traiano Trabisonda
Viva Jesus, Maria e José!
Arienzo, 24 de outubro de 1774
Ilustríssimo Senhor meu estimadíssimo,
Meu amigo e senhor, acerca do sentimento que se me pede sobre os
assuntos atuais da Igreja e a eleição do Papa, que pensamento posso
apresentar, eu um miserável ignorante e de tão pouco espírito, como sou?
Digo apenas que são necessárias orações e grandes orações; já que, para levantar a Igreja do estado
de relaxamento e de confusão em que se encontram universalmente todos
os níveis, nem toda a ciência e prudência humana conseguem remediar, mas
é preciso o braço onipotente de Deus.
Entre os bispos, poucos são os que têm verdadeiro zelo pelas almas.
As comunidades religiosas, quase todas e mesmo sem o quase, estão relaxadas, porque nas congregações, na presente confusão das coisas, falta a observância e a obediência se perdeu.
No clero secular as coisas estão piores e, por isso, faz-se necessária aí uma reforma geral para todos os eclesiásticos, de maneira a reparar a grande corrupção dos costumes, que existe entre os seculares.
Por isso é preciso rezar a Jesus Cristo que nos dê um Chefe da Igreja que,
mais do que de doutrina e de prudência humana, seja dotado de espírito e
de zelo pela honra de Deus, e seja totalmente alheio a qualquer partido
e respeito humano, porque se, por nossa desgraça, acontecesse um Papa que não tem apenas a glória de Deus diante dos olhos, o Senhor pouco o assistirá e as coisas, como estão nas presentes circunstâncias, irão de mal a pior.
Assim que as orações podem trazer remédio a tanto mal, ao obter de Deus que ele mesmo ponha a sua mão e conserte.
Por isso, não somente impus a todas as
casas da minha mínima Congregação que rezem a Deus, com atenção maior do
que habitualmente, pela eleição deste novo Pontífice; mas na minha
diocese ordenei a todos os sacerdotes seculares e regulares que, na
missa, recitem a coleta pro electione pontificis;
desejaria que o Senhor inspirasse ao Sacro Colégio para escrever a todos
os Núncios dos reinos cristãos, para que ordenassem esta coleta, por
parte do Sacro Colégio, a todos os sacerdotes.
É este o sentimento que eu, miserável, posso apresentar.
Para esta eleição do Papa, não deixo de rezar mais vezes ao dia,
mas o que podem minhas frias orações? Contudo, confio nos méritos de
Jesus Cristo e de Maria Santíssima, que antes que a morte me atinja, que
me está muito perto pela idade tão decadente e pela doença em que me
encontro, o Senhor possa consolar-me fazendo-me ver a Igreja
reconstituída.
Acrescento, amigo, que também eu
desejaria, como Vossa Senhoria ilustríssima, ver reformados tantos
desarranjos presentes; e saiba que, nesta matéria, giram-me pela mente
mil pensamentos, que gostaria de fazê-los presentes a todos. Mas,
olhando para a minha mesquinhez, não tenho ânimo de torna-los públicos,
para não parecer que eu quero reformar o mundo. Comunico-lhe, porém, em
confiança e como um desabafo, estes meus desejos.
Em primeiro lugar, gostaria que o próximo
Papa (já que faltam muitos Cardeais, que deverão ser nomeados)
escolhesse, entre aqueles que lhe serão propostos, os mais doutos e zelosos pelo bem da Igreja
e que intimasse preventivamente aos Príncipes, na primeira carta em que
lhes comunicará a sua eleição, que, quando pedirem o cardinalato para
algum favorito seu, não proponham senão pessoas de comprovada piedade e doutas, porque, caso contrário, não poderá admiti-los em boa consciência.
Gostaria ainda que usasse toda a sua
força em negar mais benefícios àqueles que já estão de posse dos bens da
Igreja que lhes bastam para a sua manutenção, segundo o conveniente ao
seu estado. E nisso usasse toda a fortaleza contra os compromissos que poderão aparecer.
Gostaria, além disso, que se impedisse o luxo nos prelados e, por isso, se determinasse para todos
(caso contrário, a nada se porá remédio), se determinasse, digo, o
número dos empregados, exatamente o que compete a cada categoria de
prelados: tantos camareiros e não mais; tantos servos e não mais; tantos
cavalos e não mais; para não dar mais o que falar aos hereges.
Mais ainda! Que se usasse diligência ao escolher os bispos (dos quais, principalmente, depende o culto divino e a salvação das almas), solicitando informações a mais pessoas sobre a sua vida digna e doutrina necessária para governar as dioceses. E que, também para aqueles que já estão em suas igrejas, se exigisse dos metropolitanos e de outros, secretamente, a informação sobre aqueles bispos que pouco atendem o bem de suas ovelhas.
Gostaria ainda que se fizesse perceber, por toda a parte, que bispos descuidados e faltosos
ou na residência ou no luxo das pessoas que mantêm ao seu serviço, ou
nas enormes despesas com mobílias, banquetes e coisas semelhantes, serão punidos com a suspensão ou com o envio de vigários apostólicos que consertem os seus defeitos, dando o exemplo, de quando em vez, conforme a necessidade.
Todo exemplo desse tipo faria com que estivessem mais atentos a se controlar os demais prelados descuidados.
Gostaria ainda que o futuro Papa fosse muito reservado em conceder certas graças que prejudicam a boa disciplina,
como, por exemplo, permitir às monjas saírem da clausura por mera
curiosidade de ver as coisas do século, o conceder facilmente aos
religiosos a licença de se secularizar, pelos inconvenientes mis que daí
decorrem.
Sobretudo, desejaria que o Papa reconduzisse universalmente todos os religiosos à observância do seu primeiro Instituto, pelo menos nas coisas mais principais.
Basta, não desejo mais causar-lhe tédio. Nada podemos fazer, a não ser rezar ao Senhor,
que nos dê um Pastor pleno do seu espírito, que saiba estabelecer estas
coisas que acenei brevemente, conforme for mais conveniente à glória de
Jesus Cristo.
E com isso, apresento-lhe minha humilíssima reverência, enquanto com todo o obséquio me confesso.
De Vossa Senhoria Ilustríssima obrigadíssimo servo verdadeiro
AFONSO MARIA, bispo de Santa Águeda dos Godos.
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