A
Intolerância Católica
Cardeal
Pio – 1841
Sermão
pregado na
Catedral
de Chartres
(Excertos)
Meus
irmãos(…)
Nosso
século clama: “Tolerância, tolerância”. Tem-se como certo que
um Padre deve ser tolerante, que a religião deve ser tolerante. Meus
irmãos, não há nada que valha mais que a fraqueza e eu aqui estou
para vos dizer, sem disfarce, que no mundo inteiro só existe uma
sociedade que possui a verdade e que esta sociedade deve ser
necessariamente intolerante. Mas antes de entrar no mérito,
distinguimos as coisas, convenhamos sobre o sentido das palavras para
bem nos entendermos e assim não nos confundiremos.
A
tolerância pode ser civil ou teológica. A primeira não nos diz
respeito e não falarei senão uma pequena palavra sobre ela. Se a
lei tolerante quer dizer que a sociedade permite todas as religiões
porque, a seus olhos, elas são todas igualmente boas ou porque as
autoridades se consideram incompetentes para tomar partido neste
assunto, tal lei é ímpia e ateia. Ela exprime não a
tolerância civil como a seguir indicaremos, mas uma tolerância
dogmática que, por uma neutralidade criminosa, justifica nos
indivíduos a mais absoluta indiferença religiosa. Ao contrário,
se, reconhecendo que uma só religião é boa, a lei suporta e
permite que as demais possam se exercer por amor à tranquilidade
pública, esta lei poderá ser sábia e necessária se assim o
pedirem as circunstâncias como outros observaram antes de mim.
(…)
Deixo
porém este campo cheio de dificuldades e volto-me para a questão
propriamente religiosa e teológica em que exponho estes dois
princípios:
1º
– A religião que vem do Céu é verdade e ela é intolerante com
relação às doutrinas errôneas.
2º
– A religião que vem do Céu é caridade e ela é cheia de
tolerância quanto às pessoas.
Roguemos
à Nossa Senhora vir em nossa ajuda e invocar para nós o Espírito
de verdade e de caridade: “Spiritum veritatis et pacis”. Ave
Maria.
Faz
parte da essência de toda verdade não tolerar o princípio que a
contradiz. A afirmação de uma coisa exclui a negação dessa mesma
coisa, assim como a luz exclui as trevas. Onde nada é certo,
onde nada é definido, pode-se partilhar os sentimentos, podem variar
as opiniões. Compreendo e peço a liberdade de opinião nas coisas
duvidosas: “in dubiis, libertas”. Mas logo que a verdade se
apresenta com as características certas que a distinguem, por isso
mesmo que é verdade, ela é positiva, ela é necessária e por
consequência ela é una e intolerante: “in necessariis, unitas”.
Condenar a verdade à tolerância é condená-la ao suicídio. A
afirmação se aniquila se ela duvida de si mesma, e ela duvida de si
mesma se ela admite com indiferença que se ponha a seu lado sua
própria negação. Para a verdade, a intolerância é o instinto de
conservação, é o exercício legítimo do direito de propriedade.
Quando se possui alguma coisa é preciso defendê-la sob pena de ser
despojado dela bem cedo.
Assim,
meus irmãos, pela própria necessidade das coisas, a intolerância
está em toda parte porque em toda parte existe o bem e o mal, o
verdadeiro e o falso, a ordem e a desordem. Que há de mais
intolerante do que esta proposição: “2 + 2 fazem 4”? Se vierdes
me dizer que 2 + 2 fazem 3 ou fazem 5, eu vos respondo que 2 + 2
fazem 4.
Nada
é tão exclusivo quanto a unidade. Ora, ouvi a palavra de São
Paulo: “Unus Dominus, una fides, unum baptisma”. Há, no Céu, um
só Senhor: “Unus Dominus”. Esse Deus cuja unidade é seu grande
atributo, deu à terra um só símbolo, uma só doutrina, uma só fé:
“una fides”. E esta fé, esta doutrina, Ele confiou-as a uma só
sociedade visível, uma só Igreja cujos filhos são, todos, marcados
com o mesmo selo e regenerados pela mesma graça: “Unum baptisma”.
Assim, a unidade divina que esplende por todos os séculos na glória
de Deus, produziu-se sobre a terra pela unidade do dogma evangélico
cujo depósito foi confiado por Nosso Senhor Jesus Cristo à unidade
hierárquica do Sacerdócio: Um Deus, uma fé, uma Igreja: “Unus
Dominus, una fides, unum baptisma”.
Um
pastor inglês teve a coragem de escrever um livro sobre a tolerância
de Jesus Cristo, e o filósofo de Genebra disse, falando do Salvador
dos homens: “Não vejo que meu divino Mestre tenha formulado
sutilezas sobre o dogma”. Bem verdadeiro, meus irmãos. Jesus
Cristo não formulou sutilezas sobre o dogma, mas trouxe aos homens a
verdade e disse: se alguém não for batizado na água e no Espírito
Santo; se alguém, recusa-se a comer a Minha Carne e a beber o meu
Sangue, não terá parte em Meu reino. Confesso que nisso não há
sutilezas, há intolerância, a exclusão a mais positiva, a mais
franca. E mais, Jesus Cristo enviou seus Apóstolos para pregar a
todas as nações, isto é, derrubar todas as religiões existentes
para estabelecer em toda a terra a única religião cristã e
substituir todas as crenças dos diferentes povos pela unidade do
dogma católico. E prevendo os movimentos e as divisões que esta
doutrina vai incitar sobre a terra, Ele não se deteve e declarou que
tinha vindo para trazer não a paz mas a espada e acender a guerra
não somente entre os povos, mas no seio de uma mesma família e
separar, pelo menos quanto às convicções, a esposa fiel do esposo
incrédulo, o genro cristão do sogro idólatra. A afirmação é
verdadeira e o filósofo tem razão. Jesus Cristo não formulou
sutilezas sobre o dogma. (…)
Falam
da tolerância dos primeiros séculos, da tolerância dos Apóstolos.
Mas isso não é assim, meus irmãos. Ao contrário, o
estabelecimento da religião cristã foi, por excelência, uma obra
de intolerância religiosa. No momento da
pregação dos Apóstolos, quase todo o universo praticava essa
tolerância dogmática tão louvada. Como todas as religiões eram
igualmente falsas e igualmente desarrazoadas, elas não se
guerreavam; como todos os deuses valiam a mesma coisa uns para os
outros, eram todos Demônios, não eram exclusivos, eles se toleravam
uns aos outros: Satã não está dividido contra si mesmo. O Império
Romano, multiplicando suas conquistas, multiplicava seus deuses e o
estudo de sua mitologia se complica na mesma proporção que o da sua
geografia. O triunfador que subia a Capitólio, fazia marchar diante
dele os deuses conquistados com mais orgulho ainda do que arrastava
atrás de si os reis vencidos. A mais das vezes, em virtude de um
Senatus-Consulto, os ídolos dos Bárbaros se confundiam desde então
com o domínio da pátria e o Olímpio nacional crescia como o
Império.
Quando
aparece o Cristianismo (prestem atenção a isso, meus irmãos,
são dados históricos de algum valor com relação ao assunto
presente), o Cristianismo quando apareceu pela primeira vez, não
foi logo repelido subitamente. O paganismo perguntou-se se, ao invés
de combater a nova religião, não devia dar-lhe acesso ao seu seio.
A Judeia tinha se tornado uma província romana. Roma,
acostumada a receber e conciliar todas as religiões, recebeu a
princípio, sem maiores dificuldades, o culto saído da Judeia. Um
imperador colocou Jesus Cristo assim como Abraão entre as divindades
de seu oratório, como viu-se mais tarde um outro César propor
prestar-lhe homenagens solenes. Mas a palavra do profeta não tardou
a se verificar: as multidões de ídolos que viam, de ordinário sem
ciúmes, deuses novos e estrangeiros serem colocados ao lado deles,
com a chegada do Deus dos cristãos, lançam um grito de terror, e,
sacudindo sua tranquila poeira, abalam-se sobre seus altares
ameaçados: Ecce Dominus ascendit, et commovebuntur simulacra a facie
ejus. Roma estava atenta a esse espetáculo. E logo, quando se
percebeu que esse Deus novo era irreconciliável inimigo dos outros
deuses; quando viu-se que os cristãos, dos quais se havia admitido o
culto, não queriam admitir o culto da nação; em uma palavra,
quando constatou-se o espírito intolerante da fé cristã, é aí
então que começou a perseguição.
Ouvi
como os historiadores do tempo justificam as torturas dos cristãos:
eles não falam mal de sua religião, de seu Deus, de seu Cristo, de
suas práticas; só mais tarde é que inventaram calúnias. Eles os
censuram somente por não poderem suportar outra religião que não
seja a deles. “Eu não tinha dúvidas, diz
Plínio o jovem, apesar de seu dogma, que não era preciso
punir sua teimosia e sua obstinação inflexível”:
Pervicaciam et
inflexibilem obstinationem.
“Não são criminosos,
diz Tácito, mas são intolerantes, misantropos, inimigos
do gênero humano. Há neles uma fé teimosa em seus princípios, e
uma fé exclusiva que condena as crenças de todos os povos: Apud
ipsos fides obstinata, sed adversus omnes alios hostile odium”.
Os pagãos diziam geralmente
dos cristãos o que Celso disse dos Judeus, com os quais foram muito
tempo confundidos, porque a doutrina cristã tinha nascido na Judeia.
“Que esses homens adiram inviolavelmente às suas leis,
dizia este sofista,
nisto não os censuro; eu só censuro aqueles que abandonam a
religião de seus pais para abraçar uma diferente! Mas se os Judeus
ou os cristãos querem se dar ares de uma sabedoria mais sublime que
aquela do resto do mundo, eu diria que não se deve crer que eles
sejam mais agradáveis a Deus que os outros”.
Assim,
meus irmãos, o principal
agravo contra os cristãos era a rigidez absoluta
do seu símbolo, e, como
se dizia, o humor
insociável de sua teologia.
Se só se tratasse de um Deus a mais, não teria havido reclamações;
mas era um Deus
incompatível, que expulsava todos os outros:
eis porque a perseguição. Assim,
o estabelecimento da Igreja foi uma obra de intolerância dogmática.
Toda a história da Igreja
não é outra que a história dessa intolerância. O que são os
Mártires? Intolerantes em matéria de fé, que preferem os suplícios
a professarem o erro. O que são os símbolos? São fórmulas de
intolerância, que determinam o que é preciso crer e que impõem à
razão os mistérios necessários. O
que é o Papado? Uma instituição de intolerância doutrinal, que
pela unidade hierárquica mantém a unidade de fé. Porque os
Concílios? Para frear os desvios de pensamentos, condenar as falsas
interpretações do dogma; anatematizar as proposições contrárias
à fé.
Nós
somos então intolerantes, exclusivos em matéria de doutrina: nós
disto fazemos profissão; nós nos orgulhamos da nossa intolerância.
Se não o fôssemos, não estaríamos com a verdade, pois que a
verdade é uma, e consequentemente, intolerante.
Filha do Céu, a religião cristã, descendo sobre a terra,
apresentou os títulos de sua origem; ela ofereceu ao exame da razão
fatos incontestáveis, e que provam irrefutavelmente sua Divindade.
Ora, se ela vem de Deus, se Jesus Cristo, seu Autor, pode dizer: Eu
Sou a Verdade: Ego Sum
Veritas, é
necessário por uma consequência inevitável, que a Igreja Cristã
conserve incorruptivelmente esta verdade tal qual a recebeu do Céu;
é necessário que ela repila, que ela exclua tudo o que é contrário
a esta verdade, tudo o que possa destruí-la.
Recriminar à Igreja Católica sua intolerância dogmática, sua
afirmação absoluta em matéria de doutrina, é dirigir-lhe uma
recriminação muito honrável. É recriminar à sentinela ser muito
fiel e muito vigilante, é recriminar à esposa ser muito delicada e
exclusiva.
Nós
ficamos muitas vezes confusos do que ouvimos dizer sobre todas essas
questões até por pessoas de senso. A
lógica lhes falta, desde que se trata de religião. É a paixão, é
o preconceito que os cega? É um e outro. No fundo, as paixões sabem
bem o que elas querem quando procuram abalar os fundamentos da fé,
pondo a religião entre as coisas sem consistência. Elas não
ignoram que, demolindo o dogma, elas preparam para si uma moral
fácil. Diz-se com uma justeza perfeita: é antes o Decálogo que o
Símbolo que as fazem incrédulas. Se
todas as religiões podem ser postas num mesmo nível, é que elas se
equivalem todas; se todas são verdadeiras é porque todas são
falsas; se todos os deuses se toleram, é porque não há Deus. E se
se pode aí chegar, não sobra mais nenhuma moral incômoda. Quantas
consciências estariam tranquilas, no dia em que a Igreja Católica
desse o beijo fraternal a todas as Seitas suas rivais!
Jean-Jacques
foi entre nós o apologista e o pregador desse sistema de tolerância
religiosa. A invenção não lhe pertence, se bem que ele tenha ido
mais longe que o paganismo, que nunca chegou a levar a indiferença a
tal ponto. Eis, com um curto comentário, o ponto principal do
Catecismo genovês, tornado infelizmente popular: Todas as religiões
são boas; isto é, de outra forma, todas as religiões são ruins
(…).
A
filosofia do século XIX se espalha por mil canais sobre toda a
superfície da França. Esta filosofia é chamada eclética,
sincrética e, com uma pequena modificação, é também chamada
progressiva. Esse belo sistema consiste em dizer que não existe nada
falso; que todas as opiniões e todas as religiões podem ser
conciliadas; que o erro não é possível ao homem, a menos que ele
se despoje da humanidade; que todo o erro dos homens consiste em crer
possuírem exclusivamente toda a verdade, quando cada um deles só
tem um elo e que, da reunião de todos esses elos, deve-se formar a
corrente inteira da verdade. Assim, segundo essa inacreditável
teoria, não há religiões falsas, mas elas são todas incompletas
umas sem as outras. A verdadeira seria a religião do ecletismo
sincrético e progressivo, a qual ajuntaria todas as outras,
passadas, presentes e futuras: todas as outras, isto é, a religião
natural que reconhece um Deus; o ateísmo que não conhece nenhum;
o panteísmo que O reconhece em tudo e por tudo; o espiritualismo que
crê na alma, e o materialismo que só crê na carne, no sangue e nos
humores; as sociedades evangélicas que admitem uma revelação, e o
deísmo racionalista que a rejeita; o Cristianismo que crê no
Messias que veio e o Judaísmo que O espera ainda; o Catolicismo que
obedece ao Papa, e o protestantismo que olha o Papa como o
anticristo. Tudo isto é conciliável. São diferentes aspectos da
verdade. Da união desses cultos resultará um culto mais largo, mais
vasto, o grande culto verdadeiramente católico, isto é, universal,
pois que abrigará todas as outras no seu seio.
Esta
doutrina que qualificais de absurda, não é de minha invenção; ela
enche milhares de volumes e de publicações recentes; e, sem que seu
fundo jamais varie, ela toma todos os dias novas formas sob a caneta
e sobre os lábios dos homens entre as mãos dos quais repousam os
destinos da França. – A que ponto de loucura nós então chegamos?
– Nós chegamos ao ponto onde deve logicamente chegar todo aquele
que não admite o princípio incontestável que estabelecemos, a
saber: que a verdade é uma, e por consequência intolerante,
exclusiva de toda doutrina que não é a sua. E,
para juntar em poucas palavras toda a substância deste meu discurso,
eu lhes direi: Procurais a
verdade sobre a terra? Procurai a Igreja intolerante.
Todos os erros podem se fazer concessões mútuas; eles são parentes
próximos, pois que têm um pai comum: Vos
ex patre diabolo estis. A
verdade, filha do Céu, é a única que não capitula.
Vós,
pois, que quereis julgar esta grande causa, tomai para isto a
sabedoria de Salomão. Entre essas diferentes sociedades para as
quais a verdade é um objeto de litígio, como era aquela criança
entre as duas mães, quereis saber a quem adjudicá-la. Pedi que vos
deem uma espada, fingi cortar, e examinai as caras que farão os
pretendentes. Haverá vários que se resignarão, que se contentarão
da parte que vão ter. Dizei logo: essas não são as mães. Há uma
cara, ao contrário, que se recusará a toda composição, que dirá:
a verdade me pertence e eu devo conservá-la inteira, eu jamais
tolerarei que ela seja diminuída, partida. Dizei: esta aqui é a
verdadeira mãe.
Sim,
Santa Igreja Católica, vós tendes a verdade, porque vós tendes a
unidade, e porque vós sois intolerante, não deixais decompor esta
unidade. É este, meus irmãos, nosso primeiro princípio: a religião
que desce do Céu é a verdade, e por consequência, ela é
intolerante quanto às demais doutrinas.
Não
nos pedi pois a tolerância
em relação às doutrinas. Encorajai ao contrário, nossa solicitude
em manter a unidade do dogma, que é o único laço da paz sobre a
terra. O orador romano disse: a união dos espíritos é a primeira
condição da união dos corações. E este grande homem faz entrar
na definição mesma da amizade a unanimidade de pensamento em
relação às coisas divinas e humanas: Eadem
de rebus divinis et humanis cum summa charitate juncta concordia.
Nossa
sociedade é sujeita a mil divisões; nós nos lastimamos disso todos
os dias. De onde vem este enfraquecimento das afeições, este
resfriamento dos corações? Ah! Meus irmãos, como seriam os
corações aproximados onde os espíritos estão tão distantes? É
porque cada um de nós se fecha no amor de si mesmo. Queremos pôr
fim a essas dissidências sem número que ameaçam destruir todo
espírito de família, de cidade e de pátria? Queremos não ser mais
estrangeiros, adversários e quase inimigos uns dos outros? Voltemos
a um Símbolo e nós reencontraremos logo a concórdia e o amor.
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O
Perigo da
Confraternização
Universal
das Religiões
“Dois
mil anos atrás, já se havia empreendido, às margens do
Mediterrâneo, a edificação de uma espécie de Panteon. Os cristãos
foram cordialmente convidados a colocar ali uma estátua de Jesus,
que se acotovelaria com as de Júpiter, Mitra, Osíris, Atis, ou
Ammon. A recusa dos
cristãos é a chave mestra da história…
Ninguém pode compreender o mistério da Igreja, ninguém está em
sintonia com a fé dos primeiros tempos, se não avaliar que o mundo
esteve então muito perto, de perecer na confraternização e na
compreensão mútua de todas as religiões...”.
Fonte:
Chesterton, “O Homem Eterno”.